O Valor do Casamento

Então veja você caro amigo que lê minha carta.

Recentemente fui testemunha e participante do “desfazimento” de um casamento. Coisa corriqueira, acontece todo dia, quase com todo mundo.
O que me chamou a atenção na ruptura do casório, no entanto, não foi o fim, mas o espólio material que coube ao cônjuge, protagonista, réu único e compulsório, apontadíssimo pela outra parte, da relação que findou.
Este cidadão, homem idôneo, maduro e sincero, optou transparentemente pela separação por motivo justo e incontestável: tornou a se apaixonar por amor antigo.
Em um mundo, onde vida dupla é vista como uma “escorregadinha” ou um “pulinho” para apimentar a relação, este homem, vejam vocês, optou pela verdade ao invés da vergonha de se tornar “o outro” e da mentira deslavada de fazer da sua amada “a outra”.
Que criatura terrível!!!
Ocorre, porém, caro amigo, que toda separação, como o próprio termo bem diz, engloba outras divisões, dentre elas, o do espólio material, pois o psicológico é bagagem certa.
Na divisão dos escombros do casamento finito, cuja porcentagem foge às regras matemáticas, a ele, à vil e terrível criatura que optou acima de tudo pela verdade incontestável, nada coube. Por opção, é bom que se esclareça!
Porém... há sempre algo de valor emocional que gostaríamos de manter por carinho: um presente ganho no aniversário (mesmo dado pelo ex-cônjuge), um mimo recebido de um amigo, uma bebida garimpada em uma viagem, enfim, coisas miúdas mas que desejamos manter mais pelo vínculo afetivo que pelo valor material.
Pois bem, amigo que lê minhas linhas, este homem, peça chave na relação que acabou, ponderou por muito tempo até que resolveu solicitar alguns pertences. Coisas de homem, objetos pessoais acumulados ao longo de uma relação de anos, bebidas típicas do seu paladar. Nada que pudesse configurar na relação de bens do leão anual, dada a insignificância de seu valor financeiro.
Decidido e resolvido, solicitou com a gentileza que lhe é característica, que a outra parte enviasse seu espólio, coisa de uma ou duas caixas e que nelas houvesse aquilo que foi adquirido com carinho nos anos de relacionamento.
E eis que aí surge minha figura em cena.
Atendido, ele recebeu sua encomenda e fui chamada para testemunhar a abertura de seus tesouros.
Lá estavam algumas garrafas de vinho e com elas “uma arca preta de fino linho” também conhecida por outros nomes menos nobres tais como: mala, sacola e coisas do gênero.
Eu pasma, e confesso, deslumbrada, vi a abertura da sacola e o desfile dos objetos me sendo apresentados:
- 1 bola (pequena) de arame velho e retorcido,
- 1 soquete de luz incompleto com os fios cortados,
- 1 casinha de bets. Apenas uma. Sem tacos, bola ou a outra casinha,
- 1 rodapé de azulejo (apenas um),
- 1 envelope vazio em um saco plástico,
- 1 guia vencida de um plano de saúde em nome de outra pessoa,
- 1 bomba plástica para “insuflar” colchões de ar.
Sim, havia outros objetos na mesma linha, mas para que cansá-lo  amigo que me lê. Neste momento, se o conheço bem, está atordoado diante do meu relato e diante da descrição do espólio que o tal homem recebeu.
Confesso que ri na hora. Muito. E ainda rio nas madrugadas insones.
Ri da criatividade, do trabalho em “garimpar” tais objetos espalhados e guardados em anos de uma relação, mas ri principalmente, imaginando que tipo de pessoa acumula (e herda) tal espólio absurdo.
Que tipo de homem é este que em anos de convívio matrimonial guarda um soquete velho ou um pedaço perdido de azulejo?
Quem é esta criatura que se apega a um envelope vazio e à uma guia médica sem valor?
Afinal, o que este homem andou fazendo nos últimos anos de vida para ser possuidor de tal tesouro?
Mas há que se dar crédito aos tais objetos e crédito também a quem se deu ao trabalho de procurá-los, embalá-los e enviá-los ao seu possuidor. Não deve ter sido fácil. Convenhamos.
Eu é claro, tentei racionalizar o fato, encontrar explicação para a herança que me era mostrada. Talvez se tratassem de relíquias, coisas de grande valor sentimental.
Talvez a bola de arame tenha pertencido ao trisavô ou o azulejo tenha sido obtido em uma viagem a uma ilha grega e representasse algo realmente importante.
Ou quem sabe, houvesse uma explicação pscanalítica para o arame enrolado, coeso, desgastado e à espera de servir para alguma coisa no meio da desordem de alguma despensa psicológica.
Talvez.
Talvez o soquete de luz com fios estragados representasse o homem à espera de uma oportunidade para iluminar o caminho, um cômodo, um sorriso... Sei lá.
Eis meus argumentos.
Eis minhas esperanças.
Todas vãs.
O protagonista e réu da separação incompreendida e criticada, quando interrogado sobre o valor da carga, me informou que nada ali possuía qualquer tipo de significado, exceto a simbologia retratada nos escombros e que traduziu e selou o fim de um casamento.
Ora, ora, ora... Se não fosse trágico seria o auge da comédia.
A metáfora mal feita e dirigida não atingiu seu intento. Antes, adquiriu efeito inverso e retornou a quem a gerou. De mal gosto, a piada se tornou verdadeira e no futuro ainda arrancará muitas risadas.
Anos de relacionamento traduzidos em objetos sem sentido, exemplificando o fim de sentimentos que talvez tivessem o mesmo valor.
Talvez. Não posso e nem quero entrar neste mérito.
Nunca se sabe ao certo.
O certo é que casamentos acabam.
Uns são resumidos em sacolas pretas de lona, outros em feiras de garagem, outros em mesas de juizes à espera de uma decisão e outros ainda em discussões sem fim sobre quem fica com a colher de chá e a xícara verde lascada que afinal de contas, foi comprada com o dinheiro de ambos.
Relacionamentos chegam ao fim. Já os sentimentos que os embasaram quando ainda eram sinônimo de felicidade, estes não. Estes deviam ser preservados e traduzidos no mínimo, sob a forma de respeito.
O amor também termina, a integridade deveria sempre ser preservada.
Então, caro amigo, eis a cena que presenciei. Precisava comparti-lha com você pois sei que também, é apreciador de peças cômicas revestidas dos desvios característicos da condição humana.
Meu conhecido, aquele que recebeu o tesouro impagável, não se questionou sobre o significado da herança recebida. Não é tolo. Como disse no início desta carta, é homem maduro, íntegro e honesto.
Expôs seus pertences com orgulho e leu neles apenas o valor que lhe foi dado por outros, jamais por si mesmo e por quem o reconhece e o acalenta, e compreendeu mais um pouco porque casamentos terminam.
E assim a vida continua e assim novos relacionamentos começam e terminam todos os dias. Iniciá-los e findá-los é nossa opção, o valor que damos para eles, também.

De qualquer forma, me despeço dizendo que gosto muito de compartilhar estas idéias com você e aproveito a oportunidade para informá-lo que meu conhecido quer se desfazer de seu espólio, se souber de alguém com características para recebê-lo, por favor entre em contato até quinta, dia de recolhimento dos escombros de guerra recicláveis.
 
Abraços,

Da primeira dama da bola de arame. Com muito, muito orgulho.


 
Edeni Mendes da Rocha
Enviado por Edeni Mendes da Rocha em 19/06/2012
Reeditado em 20/06/2012
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