Eutanasia - Direito de matar pou direito de morrer? - Carta 033

Carta 033

Assunto: Eutanásia - Direito de matar ou direito de morrer?

Um leitor de Vitória (ES) pede mais informações sobre a “eutanásia”.

Amigo,

Quando se fala em eutanásia (uma “boa morte”) as controvérsias ético-morais se multiplicam e o debate se reacende. Por oportuno, trago aqui uma ma-nifestação do professor Genival Veloso de França, um especialista em bioética e medicina legal, a quem tive a satisfação de conhecer e conviver nos Cursilhos de Cristandade, no tempo em que morei na Paraíba . Vale a pena lê-la na íntegra.

“O ato de promover a morte antes do que seria de esperar, por motivo de compaixão e diante de um sofrimento penoso e insuportável, sempre foi motivo de reflexão por parte da sociedade. Agora, essa discussão tornou-se ainda mais pre-sente quando se discute os direitos individuais como resultado de uma ampla mobilização do pensamento dos setores organizados da sociedade e quando a cidadania exige mais direitos. Além disso, surgem cada vez mais tratamentos e recursos capazes de prolongar por muito tempo a vida dos pacientes descerebrados, o que pode levar a um demorado e penoso processo de morrer.

A medicina atual, na medida em que avança na possibilidade de salvar mais vidas, cria inevitavelmente complexos dilemas éticos que permitem maiores dificuldades para um conceito mais ajustado do fim da existência humana. Além disso, “o aumento da eficácia e a segurança das novas modalidades terapêuticas motivam também questionamentos quanto aos aspectos econômicos, éticos e legais resultantes do emprego exagerado de tais medidas e das possíveis indicações inadequadas de sua aplicação”. O cenário da morte e a situação de paciente terminal são as condições que ensejam maiores conflitos neste contexto, levando em conta os princípios, às vezes antagônicos, da preservação da vida e do alívio do sofrimento.

Desse modo, disfarçada, enfraquecida e desumanizada pelos rigores da mo-derna tecnologia médica, a morte vai mudando sua face ao longo do tempo. A cada dia que passa maior é a cobrança de que é possível uma morte digna e as famílias já admitem o direito de decidir sobre o destino de seus enfermos insalváveis e torturados pelo sofrimento físico, para os quais os meios terapêuticos disponíveis não conseguem atenuar.

O médico vai sendo influenciado a seguir os passos dos moribundos e a agir com mais “esprit de finesse”, orientado por uma nova ética fundada em princípios sentimentais e preocupada em entender as dificuldades do final da vida humana; uma ética necessária para suprir uma tecnologia dispensável. Neste instante, é possível que a medicina venha rever seu ideário e suas possibilidades, tendo a humildade de não tentar ‘vencer o invencível’. Apesar do avanço da ciência, se auscultarmos mais atentamente a realidade sociológica atual nas comunidades de nossa convivência cultural, certamente vamos entender a complexidade e a profundeza do tema. Casabona, sobre isso, afirma que ‘tem de deixar-se assentado que a realidade se apresenta com uma complexidade muito superior, que dificulta a valorização da oportunidade da decisão a tomar.

Afirmações como incurável, proximidade de morte, perspectiva de cura, pro-longamento da vida, etc., são posições muito relativas e de uma referência em muitas ocasiões, pouco confiáveis. Daí a delicadeza e a escrupulosidade necessá-rias na hora de enfrentar-se com o caso concreto.

O ‘direito de matar’ ou o ‘direito de morrer’ sempre teve em todas as épocas seus mais extremados defensores. Na Índia de antigamente, os incuráveis eram jogados no Ganges, depois de se lhes vedar a boca e as narinas com a lama sagrada. Os espartanos, conta Plutarco em Vidas Paralelas, do alto do monte Taijeto, lançavam os recém-nascidos deformados e até anciãos, pois ‘só viam em seus filhos futuros guerreiros que, para cumprirem tais condições deveriam apresentar as máximas condições de robustez e força’. Os Brâmanes eliminavam os velhos enfermos e os recém-nascidos defeituosos por considerá-los imprestáveis aos interesses do grupo .

Em Atenas, o Senado tinha o poder absolutos de decidir sobre a eliminação dos velhos e incuráveis, dando-lhes o conium maculatum – bebida venenosa, em cerimônias especiais. Na Idade Média, oferecia-se aos guerreiros feridos um punhal muito afiado, conhecido por misericórdia, que lhes servia para evitar o sofrimento e a desonra. O polegar para baixo dos césares era uma indulgente autorização à morte, permitindo aos gladiadores feridos evitarem a agonia e o ultraje.

Há até quem afirme que o gesto dos guardas judeus de darem a Jesus uma esponja embebida em vinagre, antes de constituir ato de zombaria e crueldade, teria sido uma maneira piedosa de amenizar seu sofrimento, pois o que lhe ofereceram, segundo consta, fora simplesmente o vinho da morte, numa atitude de extrema compaixão. Segundo Dioscorides, esta substância ‘produzia um sono profundo e prolongado, durante o qual o crucificado não sentia nem os mais cruentos castigos, e por fim caía em letargo passando à morte insensivelmente’.

Assim admitida na antigüidade, a eutanásia só foi condenada a partir do ju-daísmo e do cristianismo, em cujos princípios a vida tinha o caráter sagrado. No entanto, foi a partir do sentimento que cerca o direito moderno que a eutanásia tomou caráter criminoso, como proteção irrecusável do mais valioso dos bens: a vida. Até mesmo nos instantes mais densos, como nos conflitos internacionais, quando tudo parece perdido, face as condições mais precárias e excepcionais, ainda assim o bem da vida é de tal magnitude que a consciência humana procura protegê-la contra a insânia, criando regras para impedir a prática de crueldades irreparáveis. Outras vezes, a ciência, de forma desesperada, intima os cientistas do mundo inteiro a se debruçar sobre as mesas de seus laboratórios, na procura dos meios salvadores da vida”.

Em sequência à aula do Dr. Genival, vemos que existe a eutanásia ativa, em que o médico interfere na realização da morte; há também a eutanásia passiva (ortotanásia), em que a medicina deixa o doente morrer, sem medicação, cuidados, etc. Historicamente, sabemos que os espartanos (Grécia, séc. V a.C.) matavam crianças defeituosas, adultos aleijados, epiléticos, etc.; entre os celtas (influência na cultura pragmática dos anglo-saxões) os druidas decidiam quem devia morrer. Dessa cultura brota a visão pragmática (não-cristã), que questiona se o direito à vida é absoluto ou relativo, levando aquelas sociedades a discutir a vida pelos fatos e não pelos princípios. Uma vida vale mais por sua “utilidade” do que pelo seu valor intrínseco. Não se deve matar, mas... na guerra... legítima defesa... em certos casos... Nós sempre arrumamos uma desculpa.

A Holanda legalizou a eutanásia em 2001. Há países europeus que relevam o “homicídio a pedido” ou o “suicídio assistido”, legalizando o “direito de morrer”. A recente Convenção Européia de Direitos vetou (art. 2) a eutanásia, criando o descompasso: e nos países em que ela é liberada? Como se pode notar, se trata de uma discussão que ainda vai longe. Enquanto isso... No Brasil a eutanásia é proibida, ainda, embora haja muita gente trabalhando no sentido de uma libera-ção, o Código Penal (art. 121), bem como o Código de Ética Médica (art. 66) impe-dem, pelo menos formalmente, qualquer procedimento nesse sentido. Teoricamente, justiça é, a sociedade (representada por legisladores, julgadores, Ministério Público e Igrejas) organizada em defesa da vida. No momento em que a Justiça não tutela mais o direito à vida, ou o relativiza, instaura-se o caos. Juridicamente facultado, mas nem por isso menos danoso.

Como pode – o que ocorre com freqüência – países adiantados, de Primeiro Mundo, com sistemas legais aperfeiçoados, autorizar uma eutanásia, um aborto ou uma pena de morte? Dentro de um contexto social, tais atos podem até ser legais, mas jamais serão éticos ou morais, usem os argumentos que usarem. Repetindo a frase atribuída a N. Maquiavel († 1527) “os fins justificam os meios”, muitos grupos, com interesses pseudocientífico, comerciais e de notoriedade liberam a barbárie, a injustiça e o atropelo à moral. Será que quaisquer fins justificam os meios empregados? Ainda mais que, de acordo com a filosofia, é possível perquirir “qual o fim que não é justificativa para os meios?”

E o direito do paciente terminal (ir-e-vir) de morrer ou rejeitar o tra-tamento? O que hoje se discute, nesses casos, é o direito à liberdade ou a autonomia da vontade? No Brasil, o direito à vida ocorre na esfera do direito público, enquanto a autonomia da vontade é da esfera do direito privado, tornando-se difícil estabelecer um paradigma. Ao direito do paciente de não mais receber tratamentos e aparelhos que prolonguem a vida chama-se distanásia.

Espero ter ajudado

Um abraço!

O autor é filósofo, Doutor em Teologia Moral e especialista em Bioética. Possui 112 livros editados, no Brasil e exterior, entre eles “Bioética. A ética a serviço da vida. Uma abordagem multidisciplinar”. Ed. Santuário, 2004.

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