CARTAS RUSSAS - RIQUEZA

24 de dezembro de 1968

Santa Catarina, Brasil

Escrevo esta carta para um homem chamado Vassili Efremenvich, um cidadão soviético que morreu antes mesmo de eu nascer. Quando os sinos da igreja anunciarem aos fiéis o chamamento para a Missa do Galo, me encontrarei com ele. Minha morte será desastrosa. Inglória.

Tenho 20 anos de idade e me chamo Ivan Evgenevich. Sou natural de uma cidadezinha localizada no extremo oeste de Santa Catarina chamada Riqueza, cujo único orgulho é o Salto do Rio Iracema, onde meus amigos e eu nos divertíamos antes do golpe militar que se abateu sobre nossas jovens cabeças transformar a brincadeira em transgressão disciplinar.

Poucas pessoas conhecem Riqueza, mas foi justamente este pedaço de lugar nenhum sobre a face da terra que abrigou inúmeras famílias de imigrantes alemães e russos que para cá fugiram nos anos 1930 a fim de começar vida nova, longe dos despropósitos de Stalin, que os massacrava de maneira impiedosa, como se a fome, a miséria e o frio já não fossem cruéis o suficiente. Um ano antes do final da Segunda Guerra, migraram para cá meus pais Evgeny Warchavchik e minha manipuladora e bela mãe, Elizaveta. Buscavam ambos o aconchego e amparo dos parentes que cá viviam há alguns anos e já se encontravam estabelecidos, mas deles receberam somente portas fechadas e o mais severo dos desprezos. Talvez seja tarde, mas preciso confessar um sórdido pecado: Minha família tem uma dívida histórica com a sua, Sr. Vassili. Porém, tratemos disto mais adiante. Agora que meu passamento se aproxima, sinto que tenho tempo de sobra, ao menos para a verdade.

Evgeny, meu pai, era um desertor. Isto. Um desertor. Após ferir o próprio comandante na Batalha de Kursk, abandonou o Exército Vermelho a fim de encontrar sua Elizaveta, que havia parido uma menina e mentido nas cartas que enviara, onde implorava que meu pai a ajudasse a salvar do horror da guerra o seu primeiro varão. Atendeu suas súplicas o covarde, o traidor. Quando tentou beijar o sexo de seu suposto filho homem e assim descobriu o engendro astucioso de sua esposa, deveria ele ao menos ter abandonado minha mãe à sorte dos chucrutes, mas sempre se achara ele um homem de princípios, o patife. Salvou a mulher, a filha e a própria pele ao disparar um tiro traiçoeiro contra seu capitão. Nem sequer teve coragem, o franguinho, de matar aquele que, sem dúvida, era um autêntico soldado. Meu pai não era um homem de família, apenas temia a guerra e preferiu partir como se o brio e altivez do militar que ele ferira não fossem assombrá-lo pelo resto de seus dias.

Todos em Riqueza conhecem a vergonhosa história do Judas de Kursk, ao menos a parte que versa sobre a deserção. Se soubessem dos fatos na íntegra, certamente teriam linchado meus pais até a morte e entregue minha irmã para a adoção antes que eu viesse ao mundo. Minha família não foi acolhida pelos alemães e muito menos pelos russos que aqui trabalharam pacificamente em suas colônias de terra, mesmo durante os anos de intenso conflito entre suas nações maternas. Este sentimento de união não se estendeu a meus genitores, eram eles a escória, a pior lembrança da guerra, a que remetia aos canalhas, aos velhacos.

Jamais quis ser como meu pai. Mas, enquanto eu vivesse em Riqueza, eu seria apenas uma extensão da baixeza de minha família. Eu precisava partir para dar-me a chance de uma história diferente, de uma vida da qual pudesse me orgulhar, Sr. Vassili. Que ironia o golpe militar ter me servido de força motriz para que eu me engajasse na arquitetura de uma nova identidade, na elaboração de uma história a qual eu pudesse contar com orgulho a meus filhos. Caso permanecesse em Riqueza, eu enlouqueceria ou me restaria como única opção esta que me parece a mais oportuna agora: o suicídio. Então parti.

Ingressei na Universidade de São Paulo no primeiro semestre do corrente ano, onde o curso de Filosofia nos despertou o livre pensar sobre a aterradora realidade de nosso país, nos transformou em instrumentos de luta pelo fim da ditadura, pela busca incansável e sangrenta que nos levaria à tão sonhada democracia. Aquela era minha oportunidade de glória, de renascimento. Eu sentia crescer viva dentro de mim a possibilidade de tornar-me o herói que meu pai jamais fora. Mas o sangue é uma herança traiçoeira e eu não tardaria a assemelhar-me ao homem que sempre repudiei.

Nos primeiros dias de outubro, a Rua Maria Antônia transmudou-se em uma praça de guerra. Os arrogantes e bossais da Universidade Mackenzie nos atiraram ovos enquanto cobrávamos pedágio para custearmos o congresso da União Nacional dos Estudantes, onde discutiríamos ações contra a ditadura militar. Naquela manhã, o confronto entre os grupos rivais de estudantes se resumiu a bate-bocas e pontapés. Mas, no dia seguinte, explodiram rojões, bombas e tiros, vidraças estouraram e voaram pedras, paus e tijolos. Um secundarista de apenas vinte anos de idade morreu com um tiro na cabeça disparado pelo CCC, o Comando de Caça aos Comunistas, que vive deitado no colo da Esther Figueiredo Ferraz, reitora do Mackenzie. Aquilo me deu medo, Sr. Vassili. Assistir o prédio da Universidade de São Paulo ser consumido pelas chamas despertou em meu íntimo o temor que eu jamais perdoei em meu pai: o de morrer em uma guerra. Não tive coragem de atirar sequer um coquetel molotov contra os alunos do Mackenzie. Pergunto-me quantas garrafas de etanol, gasolina e alcatrão os soldados finlandeses atiraram contra o Exército Vermelho durante o ataque à Helsinque.

Se aquele tiro houvesse ceifado minha vida e não a do Zé Carlos, hoje seria eu o estudante emblemático, o herói póstumo. Não me restam alternativas, a não ser a de seguir o caminho trilhado por meu pai e que deveria ser o fim de todos os desertores.

Há alguns dias fugi de São Paulo e retornei à Riqueza. Meus colegas estavam a desaparecer de Tremembé a Capão Redondo desde que o governo decretou o Ato Institucional Número 5 e suspendeu nossas garantias constitucionais e direitos civis. Enquanto escrevo acuado estas medonhas palavras, Sr. Vassili, os heróis de verdade estão lá, a gritarem mais alto que a voz dos fuzis. O peito nu. A cabeça erguida. Não passo de um poltrão, vítima de um destino atado a uma vergonha hereditária.

Vassili Efremenvich, o senhor foi um herói de verdade e pai de outro herói a quem sempre chamara carinhosamente de Volódia, seu filho Vladimir Vassilevich, comandante de meu pai na Batalha de Kursk.

O soldado Evgeny Warchavchik, a quem jamais havia sido delegada uma missão de maior importância, meu odioso pai, desempenhava a medíocre função de estafeta de correspondências menores, sem interesse militar, apenas bilhetes de amor, saudades epistolares ou missivas de exacerbado patriotismo. Naqueles dias recebeu ele das mãos de um correspondente de Moscou uma carta escrita em outubro de 1941 e que já se encontrava com um atraso de mais de dois anos para chegar às mãos de seu destinatário. Tratava-se da amorosa carta do pai de um oficial. Sua carta para seu filho Vladimir, Sr. Vassili. Também recebeu Evgeny na mesma ocasião a carta de sua Elizaveta, impelindo-o a abandonar a luta soviética.

Meu pai atirou no ombro de seu comandante, o Capitão Vladimir Vassilevich, sem entregar-lhe a carta paterna. A mesma carta com a qual minha mãe presenteou-me em um habilidoso gesto de crueldade, alguns dias após o funeral de meu pai – morto por um copo de leite com arsênico – e antes que eu partisse de Riqueza. Elizaveta parecia desejar que eu também fracassasse. Que vontade de rir. De chorar. Olhe só onde estou agora. Tenho em minha outra mão, engatilhada, a mesma arma que feriu seu filho na guerra, Sr. Vassili. Assim é Dona Elizaveta, sempre consegue o que anseia através de estratagemas e chantagens.

Perdoe-me o terrível crime, mas eu roubei as palavras amorosas de um pai afável que deveriam ter sido lidos por seu dileto filho. Sua carta me fez ter ainda mais coragem e ousadia em desejar um destino diferente. Penso agora, enquanto choro, enquanto rio, em tudo que o senhor e sua família passaram em Leningrado. As enfermidades impossíveis de serem tratadas por falta de medicamento, os animais domésticos devorados pelos próprios donos e que os amavam sinceramente, a fome aplacada por glicerina, vaselina, tônicos capilares e couro de sapatos cozidos em fome e água suja. Quanto tempo vocês resistiram aos açoites do inferno, Sr. Vassili? De que modo conseguiram assistir tanto sofrimento e ódio de perto e, mesmo assim, não terem deixado de lembrar e amar seu Volódia, nem mesmo por um minuto?

A madrugada poderá ser fria. Mas amanhã, sem dúvida, fará calor.

Os sinos da Missa do Galo já silenciaram e ainda estou vivo, Sr. Vassili. Por fim, decido não morrer, e não sinto que este seja um derradeiro gesto de fraqueza. Resolvo permanecer e fazer algo por mim mesmo e por minha pátria. Devo isto ao Sr. e a seu estimado Volódia. Talvez também o deva a meu pai.

Basta de covardia. É tempo de viver.

Ivan Evigenevich

EMERSON BRAGA
Enviado por EMERSON BRAGA em 14/01/2013
Reeditado em 17/01/2013
Código do texto: T4084292
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