CARTAS RUSSAS - AOS PEQUENOS BURGUESES DO SÉCULO XXI

Veneráveis e luzidios burgueses do futuro,

Encarecidamente vos peço, não desprezeis a retórica deste homem cuja língua há tempos fora sepultada pelas areias desta sucessão de dias sonâmbulos e noites insones aos quais, creio eu, vós ainda chamais pretensiosamente de vida. Atentai para minhas proféticas palavras e confirmai se a visão que tive após entornar duas belas garrafas de Wyborowa foi real ou apenas fruto de minhas lucubrações acerca da ausência total de finalidade na vida de Bessemenov e sua prole de recalcados.

Em minha viagem etílica e sobrenatural, percebi que o tempo se movia para adiante mais apressadamente que de costume, talvez porque o passado sempre nos pareça um ranço, e o presente, esta coisa avinagrada. Diante de meus olhos tomados por fascínio e assombro, as décadas sucederam-se umas sobre as outras, de tropel, como a fugir da culpa pelos erros e equívocos pretéritos. Cessado o movimento temporal embarafustado, deparei-me com minha mareada cabeça em pleno século XXI a pensar da mesmíssima forma que elaborava suas vagas conjecturas há cem anos, daí refleti: Então é isto o futuro? De repente, em um átimo de segundo, retornei a meu século estremunhado, como se me houvessem arremessado em minha poltrona feito um pelouro de artilharia, onde acordei com a pança besuntada de vômito. As mãos hesitantes, indecisas, puseram-se a redigir esta carta enquanto eu observava atônito o bailar profético das linhas que emergiam do papel.

Filhos do amanhã, vos imploro, não sejais como os pequenos burgueses de minha era. Se em vosso tempo os homens ainda mantêm seus amores enclausurados em bulas papais que ditam regras frígidas para o desenrolar das paixões humanas e não obstante se submetem aos rigores e ditames daqueles que vos exploram, não haverá sofisticação alguma no modo do homem lidar em sua posteridade com o peso e a responsabilidade da própria condição.

Em vosso futuro os homens são livres para sonhar os próprios sonhos ou entregam servis suas esperanças e desejos às mãos ávidas de quem controla seus cordões? Ainda caminham assoberbados e cheios de empáfia pelas ruas do porvir os mesmos bonecos de marfim e argila que contaminam minha época com seus discursos vazios e almas encarniçadas, com suas dialéticas de quitanda e seus falsetes orquestrados?

Temo que minha carta chegue aos primeiros anos do vosso século e se depare com existências inutilizadas, destruídas pelas mesmas mesquinhez, ganância e sovinice que me levaram a agradecer todos os dias de minha vida por ter nascido nesta época dominada por pessoas sebosas que usam chapéus caros e extravagantes a fim de esconder a cabeça medonha. Não se trata de masoquismo, digo isto porque não sou nenhum santo imaculado, tenho cá minha cota de estupidez e por isto sou merecedor da estupidez daqueles que me enfadam com suas vitórias pérfidas e inglórias, uns tubarões a alardearem apetites enormes enquanto nadam frugais em seus diminutos aquários.

E se o homem de Lyon, cujas mesas giravam no ar, estiver certo? Estarei eu vivo e a passear mecânico por este futuro para o qual escrevo, a repetir as mesmas parvoíces de minha encarnação passada, como um psitacídeo sem memória? Gritem-me que estou errado, que minha visão é resultado de meus entejos pelos homens e predileção pelo álcool, que o futuro pertence aos entusiastas e aos destemidos. Andem, não se acanhem, xinguem o maldito bêbado! Chamem-me de louco, assobiem em meus ouvidos os sons harmônicos de sua resplandecente época, onde homens não se sentem maravilhosos pelo odioso ato de ofertar esmolas a seus iguais.

Ai, que demônio me toma? O futuro deve reserva à humanidade sentimentos elevados e obras sociais maravilhosas. Parabéns, gerações vindouras, por terem superado as iniquidades e perversões éticas de meus contemporâneos.

Mas, por medida de precaução, já que a crença íntima e personalíssima que invisto em vosso avanço moral e aprimoramento humano é enormemente vacilante, abrirei outra garrafa de Wyborowa antes que o futuro me desengane.

Nasdrovia!

Teteriev

EMERSON BRAGA
Enviado por EMERSON BRAGA em 14/01/2013
Código do texto: T4084302
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