O Bem como Valor Ético - Carta 43

Carta 43

Assunto: O bem como valor ético

De uns tempos para cá – escreve um leitor de Caxias do Sul – a

Igreja Cató-lica resolveu falar continuamente em ética. O que

significa essa mudança? Novos ares na Igreja?

Caro amigo,

A caminhada até a ética cristã precisa percorrer alguns estágios de entendi-mento filosófico. Dentre eles situa-se a conceituação de bem e de valor. Se ética é ensinada como um “bom comportamento” moral, voltado para a vivência do bem como valor máximo, para adentrarmos no campo da moral é necessário estudar-se, preliminarmente os conceitos intermediários.

Em sua magistral obra, “Ética a Nicômaco”, o filósofo Aristóteles conceitua o bem, aquilo que é bom, que tem valor (o agatón, dos gregos), como “uma aspiração universal de todos os seres”. Nos tempos modernos, nenhuma classe social aceita como bom aquilo que entra em contradição com seus interesses sociais. Por isso, o bom (ou o bem), para uma determinada classe, num mesmo estamento social ou sociedade pode resultar em algo danoso para a outra. Nota-se que as idéias de bem e mal variam de acordo com as diferentes tendências morais de cada época. A mesma barragem que represa água para o gado do latifundiário, provoca a seca para as populações ribeirinhas, em geral pobres e sem voz.

Levando em conta a aspiração comum dos homens de alcançarem o bem, por considerá-lo o valor moral fundamental, embora sempre de acordo com as as-pirações concretas em cada época e em cada sociedade, existem concepções mé-dias que definem o bom como felicidade, prazer, boa vontade, utilidade. Não se trata de uma mudança ou adesão a uma idéia nova. A Igreja, pelos escritos do No-vo Testamento preconiza a ética e a moral desde os primeiros séculos

Cada uma das ideologias modernas alimenta seus valores. O que é aceito como bem para uma facção, pode ser entendido como mal pela outra. Por ideolo-gia entende-se aqui uma forma de expressão ou pensamento de um determinado grupo em certo período histórico. Dessa multiplicidade de formas de sentir o bem, a sociedade pluralista vai segmentando-se, e cada um de seus grupos pensando aprisionar o maior número possível de verdades, resultando o confronto e, não-raro, o conflito. Na iminência do conflito, os pensadores modernos foram buscar juízos medianos entre os comportamentos e aspirações sociais, a que chamaram de bem comum, que trataremos mais adiante. Apenas para ordenar nosso raciocí-nio presente, sem adiantar os assuntos que ainda vêm pela frente, podemos dizer que o bem comum é a base de toda a convivência humana.

Embora uma significativa corrente de autores de Ciência Política afirme que a expressão bem comum tenha surgido com Montesquieu († 1755) em sua obra clássica “O Espírito das Leis”, a grande verdade é que a expressão em tela fora cu-nhada, no século XIII por Santo Tomás de Aquino († 1274), na “Suma Teológica”. O bem comum, segundo o cristianismo, é inspirado no Evangelho e conduz a uma ética monista. Aliás, toda ética religiosa é monista, isto é, existe um só bem (Deus) e um único valor ético (a prática da lei divina) e todos os atos devem realizar-se de acordo com esse valor.

Nessa conformidade o bem é um valor. O ato moral perfeito busca ser a rea-lização do bem. Um ato moral positivo torna-se um ato axiologicamente rico. O bem, que a filosofia trata como o bom (agatón) e o mal são realidades que apare-cem dialeticamente, numa relação de recíproca oposição, e que apesar de opostas situam-se, comparativamente, de forma inseparável.

A partir da Idade Média (perí-odo da Escolástica), o bem passou a ser visto como algo que deriva da vontade de Deus e o mal oriundo dos poderes diabólicos. Nesse particular, e perfilado aos princípios tomistas do bem comum, o bem se tornou um sinônimo de felicidade. Esse bem já era visto dessa forma por Aristóteles, em sua formulação da eudaimo-nia (literalmente, bom espírito = felicidade), ou maneira de viver bem, conforme o espírito interior. Se o bem é visto como felicidade, para aprofundarmos nosso es-tudo, é necessário que busquemos alguns conceitos de felicidade.

 A ausência de dor (Epicuro);

 A satisfação de todas as nossas necessidades (Leibniz);

 Um ideal de vida; auto-suficiência, harmonia e liberdade

(Kant);

 O somatório de eventuais momentos agradáveis (Kierkegaard);

 Não passa de um valor cultural (Freud);

 Felicidade é viver na graça de Deus (Santo Agostinho,

cristianismo).

A fenomenologia de Max Scheler († 1928) admite que os valores sejam quali-dades objetivas do ser, ligados à sua vida espiritual (in: “O Formalismo da Ética”). Na verdade, os valores morais, oriundos da ética, existem unicamente em relação aos atos humanos. Deste modo, somente o que tem significado humano pode ser avaliado moralmente. De uma obra de arte, podemos avaliar seu valor econômico ou estético, mas nunca perquirir um valor moral.

Se a imagem lá retratada não condiz com certos padrões, a questão moral localiza-se no comportamento do ser humano que a expôs ou a produziu. As coisas materiais são neutras a valor mo-ral. O bem, entretanto, e sua aplicação na vida do ser humano, é um valor, talvez o maior. A vida, por exemplo, é o maior bem do ser humano. Mas não só a vida vegetativa, animal, espontânea, mas, sobretudo a vida cercada de valores. Como valores de vida, temos a beleza, a utilidade, a bondade, a justiça, a solidariedade, entre outros. A recíproca é verdadeira.

Os valores negativos (alguns chamam de anti-valores), como indiferença, injustiça, egoísmo, opressão, são fatores determinantes de uma diminuição da qualidade de vida do ser humano, ou seja, um achatamento de valores, uma diminuição de vida, no sentido mais profundo de bem, uma vez que esses valores negativos mais se aproximam do mal do que do bem. Nem sempre perfilada às exigências do bem comum, nossa sociedade entroniza seus valores, relativos por-que só promovem o bem de alguns grupos sociais.

Os bens econômicos têm valor de utilidade para quem pode consumi-los e para os que dele auferem lucro. Os bens sociais e morais – confundem-se, de cer-ta forma – são determinados pela dialética bem/mal, ético/não-ético, legal/ilegal, justo/injusto. Os bens religiosos, vistos sempre sob a ótica da lei natural e divina mostram o confronto entre o bem e o mal, e entre o justo e o injusto (embora mui-tas vezes o legal esteja aí incluído). Na caracterização do valor, este não é proprie-dade do objeto em si, mas propriedade adquirida graças à sua relação com o ho-mem como ser social.

Se o valor da ação humana se mede por sua utilidade ao bem de todos, o das coisas materiais, neutro, revela-se conforme as circunstân-cias. A água, por exemplo, é um bem na medida em que serve para lavar, refres-car, beber. Torna-se, entretanto, um mal, quando numa enchente, destrói e mata. Nesse aspecto, há o valor circunstancial da coisa. Não se fala na bondade da água, mas que ela é boa enquanto mata a sede, e má quando turbulenta, torna-se um perigo para a navegação. Deste modo se pode afirmar que só as ações humanas podem ser caracterizadas, em termos de valor, como boas ou más.

Nos reinos da natureza temos, por exemplo, os minerais cumprindo milê-nios a fio, seu papel de mineral. Uma pedra foi criada para ser pedra, e isso ela sempre saberá fazer muito bem. Um vegetal ou um animal irracional, igualmente têm sua destinação natural e por todo o sempre cumprirão sua finalidade. Num plano hipotético, se poderia afirmar que cumprindo sua finalidade, pedras, vegetais e bichos são, cada um à sua maneira, felizes.

Com o animal racional, a coisa torna-se diferente. Por raciocinar, por liber-dade de escolha e por impregnar de valor suas atitudes, o ser humano nem sem-pre consegue viver o bem, e em função disto, nem sempre é feliz, provocando, muitas vezes a infelicidade sua e daqueles que o cercam. Terão a visão desfocada da ética e da moral a ver alguma coisa com isto?

Um abraço,

Fico ao seu dispor.