Conhecer a Deus - Carta 046

Carta 046

Conhecer a Deus

No passado o profeta afirmou que “O meu povo está morrendo por falta de conhecimento” (Os 4,6) aludindo a derrocada do povo ao desinteresse de conhecer Deus a fundo. Mais tarde, os discípulos se aproximaram e perguntaram a Jesus: “Por que usas parábolas para falar com eles?” Jesus respondeu: “Porque a vocês foi dado conhecer os mistérios do Reino do Céu, mas a eles não. Pois, a quem tem, será dado ainda mais, será dado em abundância; mas daquele que não tem, será tirado até o pouco que tem. É por isso que eu uso parábolas para falar com eles: assim eles olham e não vêem, ouvem e não escutam nem compreendem. Desse modo se cumpre para eles a profecia de Isaías: ‘É certo que vocês ouvirão, porém nada compreenderão. É certo que vocês enxergarão, porém nada verão. Porque o coração desse povo se tornou insensível. Eles são duros de ouvido e fe-charam os olhos, para não ver com os olhos, e não ouvir com os ouvidos, não compreender com o coração e não se converter. Assim eles não podem ser cura-dos’”(Mt 13,10-15). Jesus lhes disse: “Vocês estão enganados, porque não conhe-cem as Escrituras nem o poder de Deus” (Mc 12,24). “Ah se vocês conhecessem o dom de Deus!” (Jo 4,10).

Os homens, portanto, não têm desculpa, porque, embora conhecendo a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças. Pelo contrário, “per-deram-se em raciocínios vazios, e sua mente ficou obscurecida. Pretendendo ser sábios, tornaram-se tolos, trocando a glória do Deus imortal por estátuas de ho-mem mortal, de pássaros, animais e répteis” (Rm 1,21ss). O capítulo 2 de Jeremi-as resume bastante o conteúdo geral de todo o ministério deste profeta. E nele nós podemos ver a reivindicação que Deus tinha para o seu povo. Há três versículos que resumem, dentro deste capítulo, essa reivindicação. O primeiro é o 5: “Assim diz o Senhor: Que injustiça acharam vossos pais em mim, para se afastarem de mim, indo após a vaidade, e tornando-se levianos?”. O segundo é o 13: “Porque o meu povo fez duas maldades: a mim me deixaram, o manancial de águas vivas, e cavaram cisternas, cisternas rotas, que não retêm águas”. O terceiro é o 32: “Porventura a virgem se esquece dos seus enfeites, ou a noiva dos seus adornos? Todavia o meu povo se esqueceu de mim por inumeráveis dias”.

As frases chaves nestes três versículos são: “afastaram-se de mim”, “deixa-ram-me” e “esqueceram de mim”. Há certa concomitância nelas; primeiro o afas-tamento, em seguida o deixá-lo (definitivamente) e por último o esquecer-se dele. Isto não tem nada a ver com aquilo que o povo possa ter falhado em alguns as-suntos externos, como cumprir com os rituais, trazer as ofertas, guardar certos mandamentos. Eles ainda iam ao templo de Jerusalém três vezes ao ano, seguiam sacrificando os animais, oravam pela manhã e pela tarde, esquadrinhavam as Escrituras, e ensinavam às crianças desde pequenas. No entanto, Deus tem uma queixa contra o seu povo, e essa reivindicação tem a ver com a glorificação de sua própria pessoa.

Provavelmente, eles tinham sido muito cuidadosos e diligentes no cumpri-mento de coisas, mas com respeito a Deus havia um problema. Um grande pro-blema. Conosco também pode acontecer algo assim. Pode ser que vamos a reuni-ão cada vez que a igreja é convocada, que apartemos para o Senhor os recursos que cremos ser dele, que participemos da vida da igreja, que tenhamos muitas coisas externas das quais nos gabar e pelas quais nos sentir confiados e seguros; no entanto, pode acontecer que no íntimo do nosso coração, lá onde só Deus pode ver, onde nenhum olho humano pode penetrar, haja uma carência grande, uma falta enorme. Aqui não se trata simplesmente de falhar em certas coisas, mas sim em falhar em relação a grande coisa, a maior de todas. Não se trata, por assim dizer, de cometer pecadinhos, mas sim de cometer o grande pecado: afastar-se dele, deixá-lo, esquecer-se dele. Praticar a idolatria! Talvez haja muitas coisas nas quais poderíamos nos sentir confiados e satisfeitos, no entanto, nessa confiança e nessa satisfação pode ser que Deus não esteja completamente satisfeito.

Estas expressões do capítulo 2 são muito recorrentes através de todo o livro de Jeremias. Agora, como é possível que o povo de Deus, tendo tudo por causa dele, possa esquecê-lo e abandoná-lo? É algo que nos parece insólito. Incompre-ensível. Mas era assim. O coração do homem é tão enganoso. Através da história, e ainda em nossos dias nós vemos como pessoas muito iluminada, muito conhe-cedora da Palavra, com muita revelação, por causa de havê-lo abandonado, segui-ram caminhos estranhos, extraviaram-se. Profanaram as coisas santas, dividiram o corpo de Cristo e causaram muita dor. Como é possível que os que têm mais conhecimento possam estar mais expostos a isto? É um perigo real.

Agora, onde está a explicação disto? Só diremos que o coração é enganoso e que a todos podem passar e que tomemos cuidado com isso? Se lermos atenta-mente o livro de Jeremias vamos encontrar uma chave muito importante. E isso está no capítulo 2,8: “Os sacerdotes não disseram: Onde está o Senhor? E os que tinham a lei não me conheceram”. Em seguida, no capítulo 4,22: “Porque o meu povo é néscio, não me conheceram; são filhos ignorantes e não são entendidos, sábios para fazer o mal, mas fazer o bem não souberam”. O problema era que não lhe conheciam. Os que detinham o manuseio da lei eram os escribas, e não a co-nheciam. Sim, nós também podemos ter a Palavra e mesmo assim não conhecê-la. Esse é o assunto que desencadeia todos os outros problemas.

A sua morada está no meio do engano; por muitos enganadores não quiseram me conhecer, diz o Senhor (9,6).

Por isso, quando chegamos ao capítulo 9, versículos 23 e 24, encontramos uma revelação muito importante, que nos dá luz em relação a este problema:

Assim disse o Senhor: Não se glorie o sábio em sua sabedoria, nem em sua valentia se glorie o valente, nem o rico em suas riquezas. Mas aquele que se gloria, glorie-se nisto: em me entender e me conhecer, que eu sou o Senhor, que faço misericórdia, juízo e justiça na terra; porque estas coisas quero, diz o Senhor.

Em meio de todo esse desespero e confusão em Israel, Deus diz: “Nisto que-ro que vocês se gloriem”. Não na sabedoria, nem na valentia, nem nas riquezas. Tampouco - poderíamos acrescentar – em ter um templo faustuoso, uma cidade santa, em ter a lei, nem em Moisés, o grande legislador. Nada disso é ocasião ou motivo suficiente para nos gloriarmos. O único motivo real, legítimo, para gloriar-se é conhecer a Deus, e entendê-lo. Na Igreja é costume acontecer um fato curio-so. Uma primeira geração desfrutou de uma comunhão íntima com o Senhor, e viu algo da parte de Deus. Deus lhes mostrou as suas obras e os seus caminhos. Mas logo vem outra geração, que não viu o mesmo; que só escutou dizer o que Deus fez no passado. Esta geração não conhece verdadeiramente ao Senhor.

Quantos jovens estão crescendo entre nós, estes meninos que amanhã vão sustentar o testemunho, o que estão conhecendo? Sem dúvida, eles estão conhe-cendo, em um sentido horizontal, a vida do corpo, a preciosa comunhão dos ir-mãos. Mas estão conhecendo, na verticalidade, a Deus, que é quem gera todas as demais coisas, e cuja relação é a que determina e possibilita essa outra? Se não atendermos devidamente este assunto, poderá acontecer que nas duas ou três gerações seguintes, a igreja esteja governada por pessoas que não conhecem a Deus. O que significa "conhecer"?

A palavra "conhecer" no Antigo Testamento é “yada” e tem uma significação mais profunda do que o que para nós tem “conhecer”. Para nós "conhecer" pode ser alguma coisa meramente intelectiva, um produto do estudo, mas na Bíblia conhecer é uma coisa mais íntima. Por isso, não devemos estranhar versículos como Gênesis 4,1, em que diz que “conheceu Adão a sua mulher Eva, a qual concebeu e deu a luz a Caim”, ou como em 4,25, onde diz que “conheceu de novo Adão a sua mulher, a qual deu a luz um filho, e chamou o seu nome Set”.

O que significa então “conhecer”? Em termos bíblicos, conhecer é um ato íntimo, como o do marido com a esposa. Nós estamos acostumados a ter uma idéia tão abstrata de Deus, tão idealista: o Senhor está em seu trono como o Rei, e também como Sumo Sacerdote e como Advogado; ele tem todos esses títulos maravilhosos, mas ainda assim nos parece tão longínquo e tão distante. Ao invés, dizemos: nós estamos aqui, rodeados de tantas situações, de tantos conflitos. Para entender o que significa a palavra conhecer, devemos entender esta semelhança do matrimônio. O mesmo Senhor, aqui em Jeremias, fala que Israel foi para ele “uma esposa infiel” (3,20), e que ele é o Marido que esperou por sua amada. Pro-vavelmente a relação do homem e a mulher no matrimônio não só foi delineada por Deus para mostrar a beleza da relação de Cristo e a igreja, mas também esta outra, de que o desejo de Deus é unir-se à alma humana, ao coração do crente, em uma união semelhante a do marido com a esposa. Há algo mais íntimo que isso? Há algo mais íntimo que uma relação matrimonial?

Esse é também o ato pelo qual existe a procriação. De modo que espiritual-mente também podemos dizer: Como nós poderíamos nos multiplicar? Como virão novos filhos de Deus para a realidade da igreja, senão como produto de que há homens e mulheres cujas almas se uniram a Deus nessa união profunda, nesse conhecimento íntimo? Não podemos dizer que este "conhecer" seja um assunto só do Antigo Testamento. No Novo Testamento, por exemplo, diz-se que José “não conheceu” a Maria até que deu a luz a seu filho primogênito; e lhe pôs por nome Jesus (Mt 1,25). Em uma das principais cartas de São Paulo, aos efésios, ele nos diz: Para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos dê espírito de sabedoria e de revelação no conhecimento dele (1,17).

O espírito de sabedoria e de revelação nos é dado para que conheçamos a ele. É o grande meio para alcançar o grande objetivo, que é o conhecimento de Deus. Em Colossenses, Paulo usa a palavra grega epignossis, que é este conheci-mento superior de que estamos falando (1,10), que vai além do mero ato intelecti-vo, ou doutrinário. Em Filipenses, Paulo diz: “E certamente, também estimo todas as coisas como perda pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Se-nhor, por amor do qual perdi tudo, e o tenho por lixo, para ganhar a Cristo” (3,8). Paulo estimou todas as coisas como lixo, e assim então pôde receber o conheci-mento de Cristo. Mas ainda não estava completo, porque diz mais abaixo, no ver-sículo 10: “A fim de lhe conhecer”. Ah, essa frase! O que significa? Simplesmente, que “conhecendo-o, ainda não o conheço como devo conhecê-lo”.

O Senhor diz em Jeremias: “esqueceram-se de mim, abandonaram-me”. Mas como, não lhe conheciam? Que outra coisa podia esperar deles? Se não o conhecermos, não o amaremos. E se não o amamos, não nos fará diferença estar com ele ou sem ele. O único que nos retém junto a ele, é que o conheçamos, e conseqüentemente, que lhe amemos. Deus nos quer mais perto. Ele sente sauda-des de nós. Através de Jeremias ele diz: “Vai, e clama aos ouvidos de Jerusalém, dizendo: Assim diz o Senhor: Lembro-me de ti, da piedade da tua mocidade, e do amor do teu noivado, quando me seguias no deserto, numa terra que não se se-meava”.

Em Oséias lemos: “Eu te conheci no deserto, em terra seca” (13,5). O Se-nhor conheceu a Israel no deserto. E aqui em Jeremias diz: “(lembro-me) quando andava atrás de mim no deserto”. Podemos ver claramente que o matrimônio en-tre o Senhor e Israel aconteceu no deserto. E aqui em Jeremias, quando diz “me lembro dos dias da sua juventude, do amor do seu noivado”, é como dizer: “Lem-bro-me quando estávamos em nossa lua de mel, sinto falta desses dias quando você me amava no deserto; embora no deserto não haja nada atrativo, mas eu era todo o seu atrativo. Todos sabem os problemas matrimoniais que teve o profeta Oséias, e como ele interpelava a Deus. Nós não podemos ler o profeta sem enten-der a Deus como um marido que sofre por uma mulher infiel. E justamente Oséias é um dos que mais usam a palavra “conhecimento”. E esse conhecimento tem a ver com uma relação matrimonial íntima.

O meu povo foi destruído porque lhe faltou conhecimento. Porquanto desprezou o conhecimento, eu te tirarei do sacerdócio (4,6); (quero) conhecimento de Deus mais que holocaustos (6,6).

Há que se estudar uma relação ontológica entre existência e essência Santo Tomás, ao tratar deste tema, depara-se com um problema. A Sagrada Escri-tura diz que “no princípio era o Verbo (...) e o Verbo era Deus” (Jo 1,1). ou seja, a sua existência não é um acidente, ele sempre existiu. Não foi em um determinado momento em que a potência de Deus tornou-se ato, aliás, ele não tem potência em relação à nada. Ele é ato puro. Ele subsiste todo o tempo e para alem do tem-po... Partindo desta afirmação, conclui-se que o ser de Deus é a sua essência e o que subsiste nele é seu ser.

A essência sempre traz limitação ao ser: definir é “dare finem”, dar fins, li-mites, dizer onde termina: de-limitar, de-terminar. Deus não é isto ou aquilo; Deus é. Primeiro: tudo o que existe num ser e que não faz parte de sua essência, ou têm sua origem fundamentada na própria essência deste ser; ou têm sua origem fundamentada em um fator externo deste mesmo ser, de modo que a existência seria diferente da essência. Nenhum ser finito seria suficiente para ser causa do ser infinito, ou seja, a existência de Deus não provém de nenhum fator externo a ele próprio. Ora, também é impossível que a existência dele seja causada pela sua própria essência. Assim, a filosofia nos mostra que para Santo Tomás, não se pode separar em Deus o ser e o sentir. Comumente se diz que Santo Agostinho cristianizou Platão, assim como o “doutor angélico” cristianizou Aristóteles. Como este, Tomás parte do sensível para chegar ao inteligível como processo de conhecimento. Assim, o filósofo cristão distingue cinco vias para caracterizar o conhecimento e provar a existência de Deus. Vejamos quais são:

1. Motor imóvel:

Esta primeira via supõe a existência do movimento no universo. Porém, um ser não move a si mesmo, só podendo, então, mover outro ou por outro ser movido. Assim, se retroagirmos ao infinito, não explicamos o movimento se não encontrarmos um primeiro motor que move todos os outros;

2. Causa eficiente:

A segunda via diz respeito ao efeito que este motor imóvel acarreta: a per-cepção da ordenação das coisas em causas e efeitos permite averiguar que não há efeito sem causa. Dessa forma, igualmente retrocedendo ao infinito, não poderíamos senão chegar a uma causa eficiente que dá início ao movi-mento das coisas;

3. Ser Necessário:

A terceira via compara os seres que podem ser e não ser. A possibilidade destes seres implica que alguma vez este ser não foi e passou a ser e ainda vem a não ser novamente. Mas do nada, nada vem e, por isso, estes seres possíveis dependem de um ser necessário para fundamentar suas existên-cias;

4. Ser perfeito (e causa de perfeição dos demais):

A quarta via trata dos graus de perfeição, em que comparações são consta-tadas a partir de um máximo (ótimo) que na verdade contém o verdadeiro ser (o mais ou menos só se diz em referência a um máximo);

5. Inteligência ordenadora:

A quinta via fala da questão da ordem e finalidade que a suprema inteligên-cia governa todas as coisas (já que no mundo há ordem!), dispondo-as de forma organizada racionalmente, o que evidencia a intenção da existência de cada ser.

Todas essas vias têm em comum o princípio de causalidade, herdado de Aristóteles, além de partirem do empírico, ou seja, de realidades concretas e de um mundo hierarquicamente ordenado. Assim, o homem é um ser intermediário entre os seres de forma mais elementar, como os minerais, as plantas e os ani-mais, e os seres mais perfeitos como os anjos e Deus. O homem possui as carac-terísticas dos anteriores a ele e também dos procedentes na hierarquia do univer-so. É aí que se faz necessário o conhecimento... Só se ama aquilo (ou Aquele) que se conhece.