Iraci:

     Acredito que você jamais lerá essa carta, mas preciso escrevê-la. Talvez seja um pedido de desculpas por ter tentado lhe tirar do casulo que você escolheu para viver.
     Lembro perfeitamente o dia que você aportou na casa de apoio. Seus olhos eram assustados como os de uma corsa na caça. Seus gestos, tímidos, medrosos. Sua fala, mal saia. Mas, o que mais me chocou foi sua idade. Apenas 32 num corpo cinqüentão. Na verdade, estávamos ambas, assustadas. Eu não saberia como lidar com você. Seu passado pesava muito, mas não tanto quanto seu presente. Como eu faria para lhe mostrar que você era jovem e que tinha direito à vida? Tinham lhe tirado tudo, suas roupas, seus cabelos e até seu nome. De Iraci para irmã Anchieta. Iraci, a que vinha do sertão, da seca, da falta de àgua e comida, mas que tinha liberdade para correr entre os cactos à cata de algo para comer.
     Numa visita de um padre ao sertão foi feita a proposta. Iraci, a sexta filha do casal, teria o "privilégio" de ir com ele para um convento, desafogando as bocas para o pai alimentar. Mas, não era um convento qualquer, era uma clausura. Sinônimo de prisão sem direito a julgamento, sem liberdade condicional, sem direito a ver o mundo que se fechou na sua cara na hora que entrou nos muros cerceantes do convento. Você era apenas uma menina que tinha tido a vida roubada.
      Nosso primeiro encontro foi tenso. Você tinha medo de se aproximar de mim, uma mulher, segundo você, sem Deus. Era seu primeiro contato com alguém tão diferente. Sua estadia na casa seria de seis meses para tratamento de um câncer no seio. Eu me sentia impotente. Logo na chegada você me disse que não poderia dormir junto às outras pacientes. Improvisei então uns lençois como cortina. Seu sono estava preservado. Mas, nem assim você dormia. Acordava de hora em hora para rezar. Ajoelhava-se e ali ficava horas à fio. Cada dia eu menos entendia. Que tipo de lavagem cerebral tinham feito em você?
   Discordávamos de tudo. Para mim, meu Deus era aquela pessoa que me procurava. Cada ato meu era uma oração. Para você o que importava era a purificação, o sacrifício físico. Estava armada a discórdia. Suas convicções era fortes, estavam bastante enraizadas. No entanto eu contava com algum tempo para tentar abrir seus olhos para a vida. Aos poucos, você foi se chegando. Eu não perdia a oportunidade de expor meus conceitos de vida e religião. Ali era meu templo e estava rodeada de santos. Muito antes do que eu esperava, um dia você me chamou de mãe. Nem preciso dizer o que senti. Era a resposta que eu precisava.
     Um sentimento para você desconhecido começou a aflorar, o sentimento maternal. Eu tinha uma cadelinha. Você passou a cuidar de pretinha com muito carinho. Logo pensei. Tenho o caminho para compensar esse seu lado. Comprei uma cadelinha poodle branquinha e lhe presenteei. Você riu e chorou. Sua feliciade era tanta que você mal se continha. De noite, Alminha, como tinha sido batizada a cadela, passou a dormir ao seu lado. Iraci e Alminha era inseparáveis. Acredito que Alminha lhe ajudava mais que todos os remédios juntos.
      Com o passar dos dias, Iraci foi aprendendo a me gostar. Passou a respeitar meu trabalho e a entender que eu não precisava de um rótulo para fazer o justo. Cuidar daquelas pessoas que vinham em busca de alento para suas dores. Ainda não tinha conseguido que você parasse de rezar com tanta freqüencia, mas você passou a me ajudar com os pacientes que chegavam. Nossos laços foram se estreitando e logo deixei de ser para você a terrível mulher sem Deus.
       Seis meses logo passaram. Você tinha feito quatro operações e o tempo de voltar a sua prisão chegava. Mesmo triste, eu tinha que devolvê-la. Juntamos suas poucas coisas. Nos seus braços, aconchegada a seu manto, Alminha. Logo na chegada ao convento, a recepção não poderia ter sido mais triste. A madre superiora veio nos receber. Nem um muito obrigada... A partir dali, morreria Iraci e renasceria Irmã Anchieta. Será que eu errei lhe mostrando um pouco do mundo? Daí veio o golpe final. A superiora numa voz altiva disse: Irmã Anchieta, entregue a D. Marly essa cachorra. Tentei argumentar o quanto Alminha seria importante na sua recuperação. Em vão. A superiora manteve-se fria e autoritária. A cadela não entra. Você me olhou (nunca esquecerei seu olhar) e pediu, fique com ela. Eu nada podia fazer, encarei a superiora e me saiu um sonoro FILHA DA PUTA.