As manipulações genéticas - Carta 060

AS MANIPULAÇÕES CIENTÍFICAS

Meu caro Antônio. Sei que você possui um livro sobre bioética,

e ministra cursos e conferência sobre o assunto. Gostaria que

falasse sobre manipulações científicas. Tereza Soares (Passo

Fundo, RS)

Auschwitz, Tuskegee e adjacências

Em julho de 1941, Hermann Goering (†1946) encarregou a Schutzstaffel (SS) e a Gehemeine Staatspolizei (Gestapo) de eliminar os judeus da Europa. Primeiro fuzilaram milhares; depois recorreram aos médicos com especialização em genética humana. A imagem dos carrascos confundia-se com a dos médicos, com seus aventais brancos. O filme “A lista de Schindler” mostra essa dicotomia. Em Chemno, Sobibor e Auschwitz (na Polônia) foram criadas, por especialistas, câmaras de gás, usando a tecnologia da empresa Degesh, filial da IG-Farben, que depois da guerra converteu-se em Hoechst e BASF. Até o final de 1942, mais de 2,5 milhões de judeus haviam sido mortos. Ao todo, os óbitos beiraram os 6 milhões. O médico-chefe em Auschwitz era o tristemente célebre Dr. Joseph Mengele († 1991), que inoculou o vírus do tifo em vários presos do campo de concentração, bem como retirou olhos, órgãos internos, além de usar esqueletos de crianças para suas experiências.

O tribunal de Nuremberg em 9 de dezembro de 1946, julgou vinte e três pessoas alemãs, vinte das quais médicos, que foram consideradas como criminosos de guerra, devido aos brutais experimentos realizados em seres humanos. O Tribunal demorou oito meses para julgá-los. Em 19 de agosto de 1947 o próprio Tribunal divulgou as sentenças, sendo que sete de morte, e um outro documento, que ficou conhecido como Código de Nuremberg. Este documento é um marco na história da humanidade, pois pela primeira vez foi estabelecida uma recomendação internacional sobre os aspectos éticos envolvidos na pesquisa em seres humanos.

No entanto, sabe-se que mais de uma centena de médicos devem ter atuado nos campos nazistas de extermínio e/ou experiências, e pelo menos setenta deles participaram dos experimentos com seres humanos, sendo que desses, não mais que vinte foram processados, todos de menor expressão. É o caso do Dr. Mennecke conhecido com o “carniceiro do avental branco”. Os demais, os de mais alta hierarquia já haviam fugido ou sido recrutados para trabalhar em outros países. Inclusive nos Estados Unidos. Lembrar o tribunal de Nuremberg é manter a memória da humanidade. É trazer para o momento atual o debate destes aspectos, infelizmente, nem sempre lembrados, com o objetivo de prevenir que situações como estas ocorram novamente.

Quando terminou a guerra, as potências vencedoras (Estados Unidos, Inglaterra e União Soviética) fizeram com que um “loteamento” dos cientistas alemães, levando os melhores (inclusive alguns genocidas) para seus países. Como a grita mundial (especialmente das comunidades judaicas) era muito grande, um modesto número de alemães foi preso e acusado de genocídio, acabando por serem julgados e condenados (a maioria à morte) pelo tribunal de Nuremberg. Até hoje, as comunidades de origens germânicas, em todo o mundo, fazem questão de afirmar que o povo alemão não sabia o que estava acontecendo. Para não exacerbar quaisquer ranços racistas, vamos deixar como está, embora se saiba que não é bem assim, pois bastaria ficar atento àquela migração de milhões de judeus, que eram colocados em trens, com passagem só de ida.

Para quem pensou que as “experiências científicas” fossem uma macabra característica do nazismo, visto naqueles soturnos documentários em preto-e-branco, enganou-se. A história no-lo revela manipulações e pesquisas tão terríveis quanto às perpetradas nos campos controlados pelos alemães. Se não no número de vítimas, análogas na monstruosidade. É curioso ver que a mídia mundial, e em especial a norte-americana, na chamada “terra da democracia e da liberdade”, se manifesta, periodicamente contra certos atos, como a esterilização em massa, verificada na Índia, na década de oitenta. No entanto, no que tange às aberrações cometidas lá mesmo, nos Estados Unidos, o silêncio é total. Total, omisso e cúmplice.

O caro leitor já ouviu falar em Tuskegee, um modesto condado do Alabama, no sul dos EUA? Foi lá que, a partir de 1932 foram feitas macabras experiências com negros, pobres e miseráveis, para ver como seus corpos reagiam ao vírus da sífilis? Ao mesmo tempo em que se faziam testes com pessoas na Europa, também se fazia nos Estados Unidos. Pois em Tuskegee, 412 homens sifilíticos, negros, iletrados e pobres foram mantidos sem tratamento com o objetivo de se estudar a evolução da doença. Não apenas era negado a eles o tratamento, mas também a informação de que tinham sífilis, o que contribuiu para sua disseminação entre a população negra do Alabama.

Esse experimento revelou-se cruel em face do desrespeito às pessoas, do tempo prolongado de sua realização e pelo fato de ser do conhecimento de inúmeros médicos. Os negros foram atraídos pelas promessas de tratamento, cura, alimentação, casa para morar e – pasmem – enterro grátis. E depois, os americanos, passando por cima de seu Auschwitz particular, arvoraram-se em juízes e promotores, ao acusar e julgar os carrascos nazistas por crimes, se mais numerosos, de igual crueldade. O que os sicários de Hitler fizeram não tem justificativa; assim como injustificável é a atitude de muitos “cientistas” americanos. É igualmente criminosa a omissão de seus governos, mídia e opinião pública.

O que hoje se conhece a respeito dos efeitos da sífilis, deve-se, em parte, a esse experimento macabro. Será que tanto sofrimento e morte compensou a descoberta? Cinicamente, os americanos, durante quatro décadas, publicaram 14 trabalhos científicos sobre a “pesquisa” de Tuskegee, alguns deles em periódicos sérios como o The New England Journal of Medicine e o American Journal of Medicine. Apesar de os artigos fazerem referência explícita aos dados obtidos nesse estudo, nenhuma dessas revistas comentou as circunstâncias imorais através das quais eles foram conseguidos.

Depois da guerra, instalou-se o chamado “Tribunal de Nuremberg”, que julgou os experimentos nazistas com seres humanos, mas omitiu de denunciar as monstruosidades que se faziam nos Estados Unidos. O título do livro do jornalista brasileiro David Nasser, reportando-se às torturas do “Estado Novo” brasileiro (1937-1945) também cabe a muitos cientistas americanos: “Falta alguém em Nuremberg”.

Se alguém imagina que a punição aos carrascos de Hitler fez arrefecer a realização das experiências em Tuskegee, enganou-se. Elas só foram suspensas em 1972 (quando os americanos enchiam a boca, falando em “direitos humanos”), quase trinta anos depois de se conhecer a eficácia da penicilina no tratamento da sífilis. O fato foi denunciado à opinião pública mundial por um jornalista do The Washington Post. Sintomaticamente, a página sobre o episódio Tuskegee na Internet está “em manutenção”. Há dois anos...

O que mais nos assusta, pelo menos aos homens e mulheres engajados na instauração de um processo ético abrangente, é que Tuskegee não é um fato isolado nem perdido na bruma do passado. Mais além do escândalo dos nazistas há os escândalos dos honestos pesquisadores norte-americanos. Vamos citar apenas três:

• inoculação do vírus da hepatite em mais de duzentas crianças

retardadas, na Willowbrook State School, em 1982;

• idosos receberam injeções de células cancerosas, no Jewish

Chronic Disease Hospital, em 1986;

O dramático dessas questões, é que as experiências não ocorreram em passado distante, nos ínvios sertões do Alabama ou da África. Não! Essas experiências se verificaram em New York City, nas últimas décadas do século XX. Pelo visto tais cientistas não se assustaram com Nuremberg. Quem nos garante que agora, no momento em que escrevo esta frase, em algum sinistro laboratório alguém não está sendo vítima de “experiências” daquele tipo? Quem garante? Há segmentos independentes da mídia norte-americana que levantam dúvidas e suspeitas a respeito de alguns programas de agências oficiais de espionagem (entre elas a CIA), muitas delas acusadas de “lavagens cerebrais”, “controle de mentes” com o fito de criar pessoas robotizadas, humanos-irracionais, treinados exclusivamente para matar. É a ciência desvirtuada para o ilícito.

A bioética outorga à sociedade o direito de vigiar e protestar através de todos os meios disponíveis, seja pelo direito, pelos meios de comunicação ou pelas passeatas públicas. É sabido que muitas pesquisas de “novas técnicas”, resultam, muitas vezes em tentativas frustradas e gastos inúteis. Nos casos de New York City, os jornais descobriram, publicaram e a população protestou.

Como defesa (e justificativa?) a comunidade científica americana protestou contra o “banco de embriões” da Inglaterra. É o típico pragmatismo anglo-saxão. E não foram praticadas por gente sem credenciais, mas por médicos e cientistas. Ninguém respondeu aos protestos mundiais. Isto serve para mostrar que estamos sempre a mercê de abusos desse tipo, pois a legislação sobre o assunto ainda é muito escassa.

A questão que se nos suscita é a seguinte: será que pararam as tais experiências envolvendo seres humanos? Ou acontecem até hoje, “por debaixo dos panos”? Quantos experimentos sinistros, quantos frankenstein, não estariam acontecendo na surdina dos laboratórios? Quem nos garante que não? São perguntas que não querem calar...

O fisiologista francês, Claude Bernard († 1878), considerado o criador da medicina experimental, afirmou em 1865, que “o princípio da moralidade médica e cirúrgica consiste em nunca realizar um experimento no ser humano que possa prejudicá-lo, mesmo que o resultado seja altamente vantajoso para a ciência, isto é, para a saúde dos outros”.

A Teologia Moral mundial, não só a católica, mas também a protestante, a pentecostal e de outros segmentos religiosos tem denunciado um confronto/conflito instalado, da moral cristã com a bioética “made in USA”. Dizemos que nós brasileiros somos campeões do jeitinho, mas lá eles sempre arrumam uma maneira de coonestar o que foge à ética e à moral. Nos Estados Unidos, o pragmatismo vigente (“os fins justificam ou meios” ou “não me importa a raça do gato desde que cace ratos”) tem atropelado a ética e – uma falsa bandeira deles – os direitos humanos.

Fecundação e fertilização

Antes que alguém pergunte, controle de natalidade, explosão populacional ou qualquer tópico ligado à fertilização humana, natural ou artificial, também é assunto afeto à bioética. A superpopulação, do jeito que ocorre hoje, resulta em problemas de toda a ordem, como

• habitação

• saneamento

• escola

• emprego

• saúde

• alimentação

• aumento da “dívida externa” para custeio do déficit.

É sabido que os países ricos (20% da população mundial) detêm 80% da renda e da produção. De outro lado, os 80% da população do mundo, têm que se contentar com 20% dos bens e da renda, o equivale a pobreza, fome e indigência. Os países do Primeiro Mundo são fechados em si mesmos. Exemplo disto é a dureza xenófoba com que reprimem a entrada de imigrantes (e até turistas) em seus países, por exemplo, Inglaterra, França, Alemanha, Portugal, Itália, Bélgica e Japão.

Não seria mais humano ir ao encontro do que se fechar inutilmente? Por que não lembrar que no século XIX, quando a Europa enfrentava sérias dificuldades, muitos dos países hoje pobres, abriram suas portas e acolheram imigrantes em busca de futuro? Por que não lembrar as matérias-primas saídas dos países hoje pobres para construir a fartura dos países hoje ricos? Não seria tempo de resgatar pelo menos esta dívida? (cf. J. S. MUNARO, Demografia e Bioética).

A Igreja não é contra o controle da natalidade! Quem afirmar isto estará demonstrando sua ignorância quanto ao assunto, ou agindo propositadamente de má fé. A Igreja é contrária ao aborto (por que é um assassinato); é contra a “camisinha” (não pela proteção em si, mas pela liberalidade que suscita aos jovens); igualmente rejeita o DIU (dispositivo intrauterino) por abortivo. Assim como não é normal a incidência das famílias numerosas, que se tornam carentes dado o significativo número de pessoas a alimentar e manter, a Igreja igualmente é contra, como se verifica na maioria das famílias da Europa de hoje, as chamadas “famílias enxutas”.

Trata-se dos casais sem filhos (ou no máximo um). Isso causa um aumento da média de idade das pessoas (não se vê muita criança na Europa), com populações velhas. A teoria da Igreja inflete num controle racional, primeiro da sexualidade e, por consequência, na natalidade. Seria como dizer: “tenha os filhos que você possa sustentar e viver com eles uma vida digna”. A escolha do número de filhos é uma decisão madura que o casal deve tomar. Não se trata de proibir, mas estatuir métodos dentro da ética, e que não sejam contrários à natureza. Nossas populações poderiam viver melhor, de forma mais digna, se quem de direito criasse empregos, diminuísse os impostos, gerasse moradias, apoiasse o plantio de alimentos (e não de oleaginosas exportáveis), evitasse o desperdício, o dinheiro público mal empregado nos altos salários dos Três Poderes (que tão pouco fazem pelo povo).

Toda a pessoa humana é titular de um direito absoluto, e como tal, e por causa disto, não pode ser instrumentalizada nem manipulada. Assim, vemos a fecundação como um momento ético, quando o concepto torna-se pessoa humana. A partir da fecundação já há vida... é o que nos diz a Congregação para a Doutrina da Fé (CDF): O ser humano deve ser respeitado e tratado como pessoa, desde a sua concepção (cf. DVI. Introd.).

O que significa cidadania na área da reprodução familiar? É o direito da família em decidir quantos filhos pode/deve/quer ter, e sobretudo o resguardo do direito de nascimento ao filho que foi concebido. Nesse particular, cidadania familiar é, sobretudo, proporcionar qualidade de vida a todos os seus membros. O direito de cidadania de uma família é viver uma vida com dignidade. De outro lado, muitos casais inférteis, vão buscar na biotecnologia, nem sempre ortodoxa, uma forma de terem os filhos que a natureza biológica lhes negou. O que é cientificamente aceitável pode ser eticamente (e também teologicamente) discutível. Se Deus (para quem crê nele) e a natureza não deram a eles o dom da paternidade/maternidade, ao buscarem-no por outro lado, de outra forma, não estariam violando – sabe-se lá com que consequências – o projeto divino? Até que ponto o homem tem o direito de interferir na natureza humana?

Por aí surge sempre uma dúvida, a partir dos filósofos, que fazem parte daquela instância da humanidade com obrigação de pensar, sem se deixar levar pela euforia do novo. Será que tantas “experiências” que se ouve falar por aí, são feitas pelo bem da humanidade? Ou para obter notoriedade científica (prêmio Nobel, etc.)? Essa avaliação torna-se o desafio ético permanente da bioética, em face da crise de paradigmas morais que se verifica hoje em dia.

A fertilização artificial pode ser vista como uma atitude moralmente aceita, ou uma subversão à ordem da natureza? É sabido que a pessoa ao ser concebida precisa ser amada, expectada, planejada, querida... Por isso é concebida através de um ato de amor de seus pais, e não “produzida” através de uma fria técnica reprodutória. As FIVET (fertilizações in vitro) têm uma história recente. As primeiras experiências aconteceram em 1970; oito anos depois, na Inglaterra nascia Louise Brown, o primeiro “bebê de proveta”, gestação ocorrida através de uma “barriga de aluguel”. O homem começava a brincar de Deus em seus laboratórios... À primeira vista, o fato é miraculoso: vencer, pela ciência, algumas deficiências apresentadas pela natureza, ou seja, dar à luz Louise, uma menina saudável e esperta, através da ciência, coisa que na forma natural e tradicional nunca seria possível.

Há que se perceber aqui dois lados dessa evolução: um que assusta ou mesmo repugna pelos possíveis maus usos e devastadores resultados atingindo a dignidade humana; e outro que pode entusiasmar pelas possibilidades que abre exatamente em favor da qualidade da vida humana (cf. M. FABRI DOS ANJOS, Ética e Clonagem Humana na questão dos Paradigmas, apud L. PESSINI et ali).

A humanidade teme as experiências científicas com a mesma intensidade que as procura. De um lado é o homem brincando de Deus, com todos aqueles monstros e sobressaltos que vimos nos filmes de ficção-científica, enquanto por outro abre-se a possibilidade de curas e melhorias na qualidade de vida das pessoas. Na verdade é que está instalado o dilema: ética ou ciência? É possível conciliar os dois? Há outra questão: poderá uma pessoa, fertilizada in vitro, ter uma estabilidade psíquica, capaz de amar e se deixar amar, ou será alguém arredio à afetividade?

O documento Donum Vitae adverte a esse respeito: ...somente o respeito ao vínculo que existe entre os significados do ato conjugal e o respeito pela unidade do ser humano permite uma procriação de acordo com a dignidade da pessoa (cf. DVI 1).

Voltando ao terreno axiológico, que se refere aos valores do ser humano, é interessante nunca se perder de vista que o fato de ter um filho não pode funcionar como um capricho, um troféu ou uma forma muito mesquinha de manter uma união. Na realidade, o legítimo desejo de ter um filho não pode ser interpretado como uma espécie de direito ao filho, a ser satisfeito custe o que custar. Isto significa tratá-lo como uma coisa! Quanto à ciência, ela tem o dever de sustentar os processos naturais de geração da vida, não a tarefa de substitui-los artificialmente.

O Comitê Nacional de Bioética da Itália publicou recentemente um documento intitulado “Identità e Statuto dell’Embrione Umano”. Apresentou-o à imprensa o Dr. Francesco D’Agostino, Presidente do mencionado Comitê. “O Comitê rejeita a experimentação indiscriminada feita em embriões. No fundo, tem-se aqui uma questão de controle público sobre a atividade dos pesquisadores. A sociedade tem o direito de saber o que fazem os cientistas; não podemos continuar a dar carta branca aos cientistas; eles devem tornar-se conscientes dos valores e dos problemas éticos ligados às suas pesquisas”.

A palavra o falecido papa João Paulo II interpela a sociedade mundial a respeito das manipulações genéticas: “De igual modo, confirmo como gravemente ilícito para a dignidade do ser humano e da sua vocação à vida, o recurso aos métodos da procriação que a Instrução Donum Vitae definiu como inaceitáveis para a doutrina moral. A ilicitude de tais intervenções no princípio da vida e sobre embriões humanos já foi afirmada, mas é necessário que os princípios sobre os quais se fundamenta a própria reflexão moral sejam reconhecidos também a nível legal.

Portanto, faço apelo à consciência dos responsáveis do mundo científico e, de maneira particular, aos médicos, para que seja posto termo à produção de embriões humanos, tendo em conta o fato de que não se entrevê uma saída moralmente lícita para o destino humano dos milhares e milhares de embriões congelados, que, contudo, são e permanecem sempre titulares dos direitos essenciais e, por conseguinte, devem ser tutelados sob o ponto de vista jurídico como pessoas humanas” (cf. EV 44).

As fecundações extraordinárias (artificiais) podem ser classificadas como homóloga (células do próprio casal) e heteróloga (de um doador extra, que não seja o marido ou a mulher). Do ponto de vista científico não há restrições a esse tipo de procedimento. Já no terreno da ética, há controvérsias, uma vez que a fertilização artificial heteróloga viola do princípio da identidade do indivíduo. Ele é filho de quem? da mãe que deu o óvulo? da outra que emprestou o útero? E o pai quem é? o marido da mãe? ou quem doou o esperma? E nos caso da inseminação intentada por duas lésbicas, quem é o pai? Quem é a mãe?

No inverso da fertilização, aparece a esterilização, da qual não poderíamos deixar de falar. A sociedade pós-moderna, pragmática e liberal, acha que as questões populacionais se resolve com esterilização em massa, dos pobres, dos doentes, etc. Nesse processo, quem deve decidir? O Governo? A opinião pública? A mídia? Querem sempre esterilizar a mulher ou a filho do outro, nunca a sua. É como se a pessoa (mesmo deficiente) não tivesse direito à sexualidade. Os nazistas começaram assim... Os processos lícitos de planejamento familiar, aqueles oriundos de uma decisão madura do casal (e de ninguém mais), podem ocorrer através de vasectomia ou laqueadura de trompas. Deve ser uma atitude pensada, responsável e exclusivamente afeta ao casal.

Embriões para outros fins que não a vida normal...

A fecundação artificial em proveta tem sido praticada com frequência em alguns países do Primeiro Mundo por vários motivos: 1) há casais estéreis, que por uma razão qualquer não podem procriar, embora desejem ter um filho; daí o recurso a alguma das modalidades da fecundação artificial; 2) há casais homossexuais que na fantasia do “casal perfeito” querem ter um filho deles; 3) há mulheres que desejam ter um filho, mas não querem se relacionar, física nem afetivamente com homens, por isso buscam esse tipo de fertilização, para a chamada “produção independente”; 4) a FIVET também é praticada para produzir crianças cujos tecidos e órgãos serão aproveitados no tratamento de adultos carentes de algum enxerto ou transplante; 5) há até quem fale no uso de embriões como matéria-prima para cosméticos femininos. Como se constata, a geração e manipulação de embriões nem sempre percorre os caminhos da ética e da decência.

O caso é que, em função de sua fragilidade, não há fecundação in vitro sem a existência de (vários) embriões. Um só será aproveitado. Os demais vão para o lixo, ou para os rios, servir de comida para peixes. Para se obter um embrião sadio e aproveitável, são postas em atividade numerosas sementes humanas, das quais podem resultar alguns embriões, nem todos sadios; nesse processo há uma ponderável incidência de embriões defeituosos.

São aproveitados apenas uns poucos desses embriões, sendo os outros conservados em baixa temperatura (criopreservação), à espera de que alguém os solicite para experimentação médica ou para uma gestação normal. É o chamado “banco de embriões”. Esses embriões podem manter-se vivos durante muito tempo; as leis inglesas, porém, não permitem que embriões, semelhantes a uma mercadoria que se torna obsoleta, não procurados ou solicitados sejam guardados por mais de cinco anos. A razão disto, visto os objetivos iniciais do projeto, não é ética nem humanitária, mas econômica, em face do elevado custo financeiro que o congelamento impõe aos pesquisadores; aliás, o custo é cada vez mais elevado, porque o “estoque” de embriões aumenta de mês para mês. A respeito deste assunto, há uma importante manifestação do teólogo Dom Estêvão Bettencourt, OSB, intitulada “O embrião é um de nós”.

Vale a pena ler, recortar e mandar para os amigos. Fonte: Revista “Pergunte e responderemos. 413 (outubro 1996)

Num mês de agosto de um ano qualquer foram destruídos na Inglaterra 3.300 embriões, que haviam sido guardados em baixa temperatura para futuro emprego em experiências genéticas. Após cinco anos de congelamento, não foram solicitados nem pelos doadores das sementes vitais humanas nem por médicos e pesquisadores, só restou o caminho da dissolução em algum ácido e serem jogados no esgoto. Vida humana despejada em esgoto!

O fato chamou a atenção da opinião pública, que não deixou de implorar clemência para aquelas vidas humanas. Estudos recentes, entre os quais se distingue uma pesquisa realizada na Itália sob a chefia do Dr. Francesco D’Agostino, chegam repetidamente à conclusão de que, logo após a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, existe um novo ser humano a ponto que dizem os pesquisadores: ‘O Embrião é um de nós’. Essa mesma Comissão orientada pelo Dr. D’Agostino repele, com base na ciência (e não na fé), a manipulação da reprodução humana, principalmente as mais recentes modalidades da mesma: a clonagem e a hibridação ‘homem-animal-irracional’; tais experiências redundam em degradação da pessoa humana, equiparada à condição do animal irracional (que copula sem amor e sem compromisso), como também acarreta a destruição de numerosos viventes humanos (verdadeiramente humanos, embora do tamanho da cabeça de um alfinete).

Quanto aos embriões sacrificados na Inglaterra, os jornais nos deram notícia de que, numa data qualquer, à meia-noite, terminava o prazo para pedidos de clemência em favor de embriões fadados à destruição na Inglaterra. Na verdade, o que os sensacionalistas jornais britânicos queriam, não era buscar a formação de uma consciência social diante desse genocídio, escondido sob a impunidade de “pesquisa científica”. O que os tabloides ingleses desejavam – e conseguiram – foi manter, por algumas semanas, altas as vendas, uma vez que o povo, ávido por notícias dramáticas sangrentas, queria saber os detalhes mais sórdidos do caso.

Não foi o humanismo, lamentavelmente, que moveu essas iniciativas. E é de se perguntar: quantas experiências já não foram feitas, resultando na morte de embriões? A morte de um inocente, gente como a gente, compensa tantas experiências? No documento Donum Vitae, da Congregação para a Doutrina da Fé, lê-se: “É imoral produzir embriões humanos destinados a serem explorados como material biológico disponível”.

Igualmente o Catecismo mostra, em nome da Igreja e seus fiéis, seu repúdio ao mau e indiscriminado uso de embriões: 2275 Certas tentativas de intervenção sobre o patrimônio cromossômico ou genético não são terapêuticas, mas tendem à produção de seres humanos selecionados segundo o sexo e outras qualidades preestabelecidas. Essas manipulações são contrárias à dignidade pessoal do ser humano, à sua integridade e à sua identidade única, não reiterável.

Transplantes

O primeiro transplante no mundo foi feito pelo Dr. Christiaan N. Barnard († 1994), cirurgião sul-africano que fez a primeira operação de transplante de coração humano. Barnard especializou-se nas intervenções de coração aberto e no desenho de válvulas cardíacas artificiais. Em 3 de dezembro de 1967, fez o primeiro transplante de coração humano, transferindo o coração de uma mulher de 25 anos para Louis Washkansky, um comerciante de 55 anos, que morreu 18 dias depois.

O segundo transplante, em 2 de janeiro de 1968, foi para Philip Blaiberg, que sobreviveu 563 dias com o novo coração. Com a evolução das técnicas, vários de seus pacientes transplantados permaneceram vivos vários anos após a operação. Barnard chefiou a unidade de cirurgia cardíaca do Hospital Groote Schuur da Cidade do Cabo até 1983, quando se aposentou.

Hoje, no mundo inteiro – inclusive no Brasil – se realiza os transplantes mais complexos com a maior segurança e eficácia. Acho que se poderia dizer que é o ramo da medicina, e da cirurgia que mais evoluiu. Se no passado, os transplantados tinham pouca expectativa de vida, hoje, em geral, morrem de velhice ou de outras doenças, tamanho grau de eficiência daqueles procedimentos. Entretanto, para que sejam feitos transplantes é preciso que existam órgãos disponíveis, e a partir daí as coisas começam a se complicar. No Brasil, a demanda por transplantes – e consequentemente por órgãos – cresceu de tal maneira, que foi preciso a intervenção do Estado, que criou a “lei de doação de órgãos”, visando disciplinar tais atividades.

A doação – como foi dito – é presumida, ou seja, todos são doadores até manifestação contrária. A política de doações de órgãos não foi bem compreendida pela sociedade. Primeiro porque o Governo não disciplinou o processo, ocorreram abusos, erros médicos, favorecimentos e comércio de órgãos, e não houve um debate (acadêmico, ético e democrático) a coisa foi imposta de cima para baixo, criando reações.

A questão de alguém declarar-se doador, de forma tácita ou presumida, não é tão simples assim como parece (ou querem fazer parecer). Sabe-se que o Brasil tem 58% de analfabetos, sem capacidade de julgar ou decidir. Ora, essa massa de população pode ser manipulada por pessoas ou grupos sem escrúpulos, ocasionando rupturas, abusos e tragédias.

A verdade é que, em face de comércio, erros e a superficialidade das campanhas oficiais, criou-se um descrédito geral do sistema. O povo tem medo de entrar vivo e sair morto de uma clínica. Por conta disto, no Brasil, de 1998 a 2000 diminuiu a doação cadavérica para transplantes, e aumentou a de inter-vivos, o que evidencia o medo que o povo tem do comércio de órgãos. Por conta de tantos descaminhos, tem gente mandando colocar na cédula de identidade: não-doador. “A lei, ou a lacuna dela, vulnerabiliza os vulneráveis”. As autoridades envolvidas com o processo de transplantes, se queixam que não há estímulo às doações.

O povo brasileiro é solidário e humanitário. Não há campanha ou iniciativa que ele não se faça presente e não dê a graça de sua presença e colaboração. O assunto sobre a saúde, porém, pelas implicações que acarreta, é visto por muitos como algo ainda nebuloso. Alguns escândalos no tocante a transplantes, deixaram a população um tanto quanto reticente com relação às doações de órgãos, inclusive a de córneas, que não precisa maiores cuidados, e são tiradas com a pessoa morta, mesmo. É um problema que o Estado, a universidade, as associações médicas, e o amplo debate popular pode, aos poucos, e com o tempo, ir esclarecendo e dirimindo. Abaixo, uma crônica jornalística que escrevi há alguns anos atrás, que refletia o temor da população (e o meu também) no que se refere à política de transplantes de órgãos.

Eu não sei nada sobre medicina, nem tenho a pretensão de comentar algo nesse sentido, pelo menos no que tange à ética. Os filósofos, entretanto, se não entendem a mecânica da coisa, comentam sobre os valores éticos e a lógica social. Em face do mistério que envolve uma troca de órgãos, e pelo aspecto emocional que sempre está presente nessas situações, existe muito sensacionalismo da mídia, assim como uma exagerada esperança de quem precisa desse ajutório. Recentemente, o governo brasileiro, numa atitude politicamente discutível, decretou, como sabe tão bem fazer, que todo o cidadão é doador presumido.

A doação de órgãos é um gesto humanitário, um dever até, de aproveitar em uma pessoa doente e necessitada, órgãos de alguém em fase de morte cerebral. É a vida de um que continua em outro. É um ato humano, cristão e ético, sem dúvidas. Algumas coisas, porém, me deixam temeroso. Primeiro, o que é a morte cerebral? Quais os seus limites? A ciência ainda é controversa a esse respeito. Quem está em morte cerebral sente dor? Uns dizem que não. Alguns levantam possibilidades.

O outro aspecto é o da ética e da moral. Num país em que se rouba até mamadeira de criancinha, não seria possível a prática de ilícitos nesse terreno, como o comércio de órgãos? Pessoas humanas são falíveis. Não podemos pensar o médico sob o modelo daquele médico da família, que nos atende a qualquer hora, sem cobrar, perde tempo com a gente. Nas mãos dos médicos meus amigos, eu me entrego confiantemente.

Nas grandes cidades a coisa é meio massificada, mercantilizada e, muitas vezes, e os jornais no-lo atestam, a ética é meio atropelada. Aí estão a cobrança de plus nas consultas do SUS, as negativas de atendimento, os erros técnicos, as fraudes de clínicas, o corporativismo, etc., a nos mostrar que a ética não é apanágio dessa ou daquela classe. Doar órgãos é doar vida. Mas, e essa é minha questão: quem pode garantir que se estiver baixado o filho de um figurão, só para exemplificar um rico e poderoso, à espera de um transplante, e entrar no plantão um motoqueiro acidentado, será que não vão tirar o coração dele para dar ao rico? Ou se entrar uma criança acidentada, não vão dar os órgãos a outros, atestando “morte encefálica”?

Quem nos garante essa segurança? A ética profissional? Uma junta médica? Por isso alguns, muitos até (eu inclusive), carimbaram em suas carteiras: “Não doador”. Quem tem órgãos tem medo. Somos desconfiados porque ainda não somos uma sociedade ética. O ato nobre fica prejudicado pela possibilidade da corrupção. Ou não? .

A clonagem humana

O verbete clone, nos remete a algo misterioso, vindo de um filme de ficção científica, tipo Blade Runner, Alien ou Matrix. A expressão, que no mundo científico serve para identificar indivíduos geneticamente idênticos, foi introduzida na língua inglesa no início do século XX. A sua origem etimológica é da palavra grega klon, que quer dizer broto ou floração de um vegetal. A clonagem é uma forma de reprodução assexuada que existe naturalmente em organismos unicelulares e em plantas.

Há quem veja a clonagem ligada à idéia mitológica da imortalidade, do viver sempre, mesmo que seja no outro. Mais detalhadamente, se pode dizer que clonagem é um processo de reprodução assexuada, no qual são produzidas cópias de células ou genes de um organismo. Seria interessante (se não fosse trágico) destacar que a equipe de cientistas que fez o primeiro clone, utilizou 834 núcleos de células de animais adultos e de fetos. Foram feitas 276 tentativas. De todos os 156 óvulos implantados, somente 21 se desenvolveram e apenas 8 animais nasceram. Destes, apenas Dolly era oriunda de um núcleo de uma célula de um animal adulto. Dolly não durou quatro anos...

Pois, na década de noventa fomos alarmados com a grande revolução Dolly, na Escócia, quando foi demonstrado que era possível copiar, clonar, indivíduos adultos, no caso, uma ovelha. Imediatamente a sociedade mundial começou a discutir esta tecnologia aplicada à clonagem de seres humanos, gerando tanta euforia quanto pânico. Em face da controvérsia, o governo americano, alegando questões de ética, proibiu a clonagem humana. Sabemos, no entanto, que a pragmática nação americana, na hora de obter lucro ou proeminência científica, pode jogar a ética para cima. O século XX reservou à humanidade o impacto da revelação de três megaprojetos científicos, a saber:

• projeto Manhattan (década de 40)

descobriu a utilização da energia nuclear; inicialmente para

fins pacíficos; posteriormente fizeram a Bomba Atômica, que

matou perto de 50 mil pessoas, nas cidades japonesas de

Nagasaki e Hiroshima, em 1945, fazendo o mundo sempre

viver sob o terror de uma guerra nuclear;

• projeto Apolo (década de 60)

levou o homem à lua e ao cosmos; gastou incalculáveis

somas em dinheiro, mas não trouxe à humanidade um bem

maior ou benefício efetivo; apenas desencadeou uma “corrida

científica” chamada de “guerra nas estrelas”, em que o

vencedor não ganhou nada, além do título de vencedor;

• projeto genoma humano (década de 90).

conduziu o ser humano ao interior de si mesmo, com a

descoberta do século: o ADN (os americanos dizem DNA),

aquilo que viria depois da “Terceira Onda” preconizada por A.

Toffler: a revolução biológica!

Abrindo os jornais ou assistindo os noticiários da tevê, vemos, a cada dia o surgimento de uma nova descoberta científica. Umas nos enchem de esperança e júbilo, outras, chegam a assustar. Em fevereiro de 2001, foi divulgado o mapeamento do código genético humano (cf. www.nature.com), a partir de cuja descoberta ficaram abertas as portas para as mais complexas articulações científicas, umas éticas e outras não. Não vamos aprofundar essas articulações, pois nossa proposta é de um livro sobre ética, um conjunto de textos para pensar, e não um tratado sobre a tecnologia genética.

A partir do projeta genoma, surgiria a engenharia genética, capaz de descobrir e revelar muita coisa boa, mas fazer recair sobre a humanidade o terror das manipulações, desvios de finalidade e até o uso da ciência para outros fins, como comerciais ou de vaidade, criando seres anormais, como em “O Admirável Mundo Novo” (A. Huxley) e “Frankenstein” (M. Shelley).

Em tais descobertas, há que se ver os benefícios da ciência sem perder de vista os riscos de certas experiências serem desvirtuadas por caminhos espúrios. As “experiências” nazistas começaram sob um simulacro de ciência. É bom deixar claro que nem tudo o que é cientificamente possível é eticamente admissível. Foi desvendado o código genético da humanidade! Sim, e daí? O que isso vai trazer de felicidade, fartura, qualidade de vida para o ser humano?

Há vinte anos (01/11/93), o New York Times chocou o mundo com sua manchete (sensacionalista): “Cientista clona embrião humano e cria um desafio ético!”. A notícia referia-se a um anúncio de clonagem humana (depois desmentido), em que os professores Roberto Stilmann e Jerry Hall, da Universidade George Whashington afirmavam a possibilidade de construir seres em série. “A pessoa humana deve ser respeitada como um ideal; ela é uma exigência antropológica que, como uma semente ela deve ser aperfeiçoada” (cf. E. L. AZPITARTE. Fundamentação da Ética Cristã, Ed. Paulus, 1995..

Em seu trabalho “Clonar ou não clonar”, a professora Lygia da Veiga Pereira assim se manifesta: “Entre a proibição reminiscente dos tempos de Galileu Galilei e a atitude leviana criadora de Frankenstein, a Inglaterra cria um comitê para refletir: clonar ou não clonar, eis a questão. Clonar o quê, como, quando, para quê? O documento redigido levanta uma série de questões científicas e filosóficas sobre as novas tecnologias, e frisa a importância da educação da população em geral”.

O argumento, até agora definitivo, da comunidade científica contra a clonagem é o da preservação da integridade do genoma humano. Clonar, o jeito que está sendo proposto, gerar indivíduos a partir de uma célula somática, é uma temeridade, uma vez que não é possível garantir a integridade dos genes desta célula, e assim, dos genes do clone. A partir daí se poderá estar gerando "monstros", ou pior, clones aparentemente normais, porém carregando em seus genes alguma alteração que só se manifestará a mais longo prazo, tornando o problema incontrolável.

Ao procriar com outros indivíduos, o clone poderá estar disseminando alterações genéticas pela população humana que podem vir a se manifestar somente depois de várias gerações, quando já estarão presentes em um número significativo de pessoas. Então será tarde demais, e o patrimônio genético humano já terá sido alterado de forma irreversível. Este é um preço altíssimo a se pagar, e principalmente, não justificado por qualquer benefício imediato que a clonagem possa gerar.

Cientificamente – prossegue a professora Lygia – está claro que a clonagem humana reprodutiva é perigosa para a nossa espécie. No entanto, ainda corremos o risco dela ser feita mesmo assim. Infelizmente, a vaidade do ser humano é ainda mais perigosa do que a clonagem: não resistimos à tentação de fazer algo que podemos, só porque podemos.

No inicio de 2001, dois pesquisadores Severino Antinori, da Itália, e Panayotis Zavos, da Grécia informaram a constituição de um consórcio científico para a produção do primeiro clone humano, visto já dominarem a tecnologia suficiente para esse feito. Tais notícias não se confirmaram. Considerando a existência de uma vigilância ética, não se sabe ao certo se já ocorreu ou não a clonagem de seres humanos.

A preocupação com a ética dos processos de clonagem não é recente. Na clonagem, segundo os estudiosos (psicólogos, sociólogos, teólogos e antropólogos) há como que a perda da identidade do clonado em relação a seu modelo original. Ele é filho ou irmão do modelo original? O teólogo católigo Bernhard Haering († 1998), da Academia Alfonsiana de Roma/Itália, talvez o maior expoente cristão em teologia moral, alertou quanto à questão relativa à possível seleção dos indivíduos gerados. Uma vez que exista possibilidade do processo de clonagem humana, e forem constatadas anomalias, os indivíduos tidos como “defeituosos” poderiam ser eliminados. Isso ensejaria a imoral criação de novos indivíduos, “produzidos”, até atingir-se o objetivo desejado, caracterizando uma forma de eugenia. Repetir-se-ia a ficção da obra de Huxley.

No Brasil, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, talvez extrapolando a sua competência legal, proibiu os experimentos de clonagem em seres humanos. Mesmo assim, tramitaram quatro projetos de lei no Congresso Nacional sobre a questão da clonagem de seres humanos. Com isso, ficaram proibidas as clonagens no Brasil, assim como o uso de embriões para experiências genéticas e seleção do sexo da criança.

Todos os projetos proibiam tal conduta, baseando-se principalmente em aspectos religiosos ou de temor frente a este tipo de procedimento. Em nosso país, no terreno da clonagem, deparamo-nos com duas variáveis. Primeiro, o Brasil não possui recursos econômicos para bancar um projeto dessa natureza; segundo, há o risco de as empresas transacionais virem aqui colher embriões para suas experiências.

A posição que mais usual contrapõe essas manipulações, desde o ponto de vista ético, é a contida no documento Donum Vitae, publicado pelo Vaticano em 1987. Neste documento foi afirmado que: “O que é tecnicamente possível não é, por esta razão, moralmente admissível A clonagem é um dos motes mais significativos do debate ético atual.

Há muitos problemas morais e éticos relacionados com a clonagem humana. A clonagem humana está incluída no projeto do eugenismo e, portanto, está exposta a todas as observações éticas e jurídicas que o condenaram amplamente. E é o método, a forma mais despótica e, no fim, a forma mais escravizante de manipulação genética; seu objetivo não é uma modificação arbitrária da substância hereditária, mas sua arbitrária fixação em oposição à estratégia dominante na natureza.

Trata-se, sem dúvida, de uma manipulação radical do relacionamento e complementariedade constitutivas, que estão na base da procriação humana, tanto em seu aspecto biológico como no propriamente pessoal. Nesta perspectiva é adotada a lógica da produção industrial: deve-se analisar e favorecer a busca de mercado, aperfeiçoar o experimento e produzir sempre modelos novos.

Produz-se uma instrumentalização radical da mulher, reduzida a algumas de suas funções puramente biológicas (prestadora de óvulos e de útero), ao mesmo tempo que se abre a perspectiva de uma pesquisa sobre a possibilidade de criar úteros artificiais, último passo para a produção “em laboratório” do ser humano. No processo de clonagem são pervertidas as relações fundamentais da pessoa humana: a filiação, a consanguinidade, o parentesco e a paternidade ou maternidade. Uma mulher pode ser irmã gêmea de sua mãe, carecer de pai biológico e ser filha de seu avô. Com a FIVET (fertilização in vitro) já se produz uma confusão no parentesco, mas com a clonagem chega-se à ruptura total destes vínculos.

A proclamação nietzsquiana da “morte de Deus”, com a vã esperança de um “super-homem”, leva a um resultado claro: a “morte do homem”. Com efeito, não se deve esquecer que o homem, negando a sua condição de criatura, mais do que exaltar a sua liberdade, gera novas formas de escravidão, novas discriminações, novos e profundos sofrimentos.

A clonagem pode chegar a ser a trágica paródia da onipotência de Deus. O homem a quem Deus confiou toda a criação dando-o liberdade e inteligência, não encontra em sua ação somente os limites impostos pela impossibilidade prática, mas que ele mesmo, em seu discernimento entre o bem e o mal, deve saber traçar seus próprios fins. Mais uma vez, o homem deve escolher: tem que decidir entre transformar a tecnologia em um instrumento de libertação ou converter-se em seu escravo introduzindo novas formas de violência e sofrimento.

É preciso ressaltar, mais uma vez, a diferença que existe entre a concepção da vida como dom de amor e a visão do ser humano considerado como produto industrial. Frear o projeto da clonagem humana é um compromisso moral que deve traduzir-se em termos culturais, sociais e legislativos. Com efeito, o progresso da pesquisa científica é muito diferente da aparição do despotismo cientificista que hoje parece ocupar o lugar das antigas ideologias.

É preciso lembrar que o Magistério da Igreja, na instrução Donum Vitae de 1987, condenou a hipótese da clonagem humana. “A pesquisa científica em benefício do homem representa uma esperança para a humanidade, encomendada ao gênio e ao trabalho dos cientistas, quando tende a buscar remédio para as doenças, aliviar o sofrimento, resolver os problemas devido à insuficiência de alimentos e à melhor utilização dos recursos da terra “ .

Como recordava João Paulo II na encíclica Evangelium Vitae, um olhar contemplativo sobre o próprio homem e sobre o mundo, como realidades criadas por Deus, e no contexto da solidariedade entre a ciência, o bem da pessoa e da sociedade. “É o olhar de quem vê a vida em sua profundidade percebendo suas dimensões de gratuidade, beleza, convite à liberdade e à responsabilidade. É o olhar de quem não pretende apoderar-se da realidade, mas que a acolhe como um dom descobrindo em cada coisa o reflexo do Criador e em cada pessoa sua imagem vivente”.

Não é exagero afirmar que, no presente momento, enquanto uma névoa ainda cobre as mais recentes descobertas científicas (e a clonagem é uma delas), há um certo conflito entre a ética e a ciência. É nessa hora que a bioética é convocada a estar vigilante e postada ao lado da vida. Do lado ético (e religioso) busca-se a salvaguarda da dignidade humana, nem sempre respeitada e sobre a qual a ciência não nos dá uma garantia absoluta. Sob o ponto de visto científico, é preciso descobrir a cada momento coisas novas, capazes de melhorar a qualidade da vida humana, sem ameaçá-la, dando-lhe novas perspectivas e esperanças.

Clonar humanos é tanto uma questão tecnológica, quanto um assunto para os especialistas em ética. Nesse ponto há que haver equilíbrio e ponderação. Se liberar geral, vão ocorrer abusos; se proíbe, podem ser gerados rótulos de “inimigos da ciência”. É indispensável o bom senso (nem sempre presente nas “experiências científicas” da humanidade), a pesquisa, o debate, a vigilância.

A clonagem e a moral cristã

Tanto sob o prisma científico, quanto religioso, há um quase consenso na rejeição da Clonagem Reprodutiva, minhas colocações terão como horizonte a Clonagem Terapêutica, que, por sua vez, tem como pano de fundo a louvável preocupação com as inúmeras doenças de origem genética. Uma vez esclarecido o limite de minhas colocações, irei dar apenas três passos:

O primeiro, mostrando a acolhida da Igreja Católica em relação às ciências e aos avanços científicos; o segundo, apontando o porquê de certas condenações e de certas reservas críticas relacionadas a certas posturas e a certos experimentos em seres humanos; o terceiro passo apresentará alguns questionamentos em relação à Clonagem Terapêutica, seja a que seria obtida com células-tronco oriundas de embriões, seja a que seria obtida com células tronco adultas, ambas visando a obtenção de órgãos novos e a busca da cura de inúmeras doenças.

A Igreja Católica saúda os avanços científicos e tecnológicos: Infelizmente, e por razões históricas, há ainda certos setores da sociedade que vêm na Igreja Católica uma espécie de inimiga permanente e onipresente quando se trata de qualquer avanço científico e tecnológico. Não irei cansá-los com múltiplas e longas citações de documentos oficiais que exaltam as ciências e a tecnologia. Direi apenas que a própria compreensão dinâmica e evolutiva que temos da Criação e do ser humano, nos obriga a acolhermos com alegria os verdadeiros avanços, pois eles manifestam e exaltam a sabedoria do Criador.

Certamente Deus não criou um mundo “acabado”, e não nos instalou num jardim de delícias para que nós apenas usufruíssemos de tudo isto. Pelo contrário, como inúmeras passagens da Bíblia sugerem, Deus quis que o homem e a mulher fossem co-criadores, verdadeiros parceiros de uma obra grandiosa. Por isto confiou-nos a administração de todas as coisas, desde que esta seja exercida com sabedoria.

Como já sugeria um grande pensador cristão do segundo século, a glória de Deus consiste em que o ser humano seja um grande administrador, colaborador criativo e não um mero executor de ordens. A frase soa assim: “a glória de Deus é que o ser humano viva e viva plenamente .

Com isto já estamos sugerindo que também a biogenética e a biotecnologia em vez de se constituírem numa espécie de afronta ao Criador, podem se constituir num maior louvor, desde que nos façam cair de joelhos diante da inefável sabedoria deste mesmo Criador, que fez o ser humano só um pouquinho menor do que os anjos. Nem o ser humano nasce harmônico e prontinho: também ele deverá organizar-se em meio a uma espécie de caos de forças contrastantes. Ademais, ainda na linha da acolhida da Igreja Católica das verdadeiras conquistas, convém ressaltar seu apoio a tudo o que se constitui em verdadeira terapia.

Para convencer-nos desta sensibilidade, que herdamos do Cristo que ia ao encontro dos enfermos para curá-los, basta ouvir umas frases do Papa João Paulo II: “Uma intervenção estritamente terapêutica que se proponha como objetivo a cura de diversas doenças, como as que se devem a defeitos cromossômicos, como regra geral deve ser considerada desejável, suposto que tenda a realizar a verdadeira promoção do bem-estar pessoal do indivíduo, sem prejudicar a sua integridade ou deteriorar suas condições de vida.

Uma tal intervenção, de fato, se insere na lógica da tradição da moral cristã. Mas, se é assim, porquê então os “nãos” da Igreja Católica em relação a certos processos biotecnológicos? A Igreja Católica sempre disse e sempre dirá não a todos os atentados contra a vida, desde o momento da fecundação até a morte. Para ela, a vida em todas as suas formas e em todas as suas etapas, é dom de Deus, e como tal deve ser respeitada. Entretanto, os “nãos” têm muitas vezes o sentido positivo, pois nos alertam para certos riscos muito presentes, justamente no campo da biotecnologia. Irei apenas acenar para alguns destes riscos.

• Espírito de dominação em vez de reverência;

• Redução do ser humano à sua dimensão biológica, deixando

de lado todos os outros aspectos que o constituem;

• Tentação da eugenia e mesmo do racismo;

• Interesses escusos de empresas que só visam lucros e que

por isso logo correm para garantir seus direitos de patentes,

como se o genoma e o ser humano fossem objetos de

consumo;

• Interesses ideológicos;

E poderíamos ir enumerando muitos outros riscos. Mas prefiro deixar agora as razões de Igreja, para lembrar algumas conclusões a que chegaram alguns dos mais renomados cientistas envolvidos com o Projeto Genoma. De fato não são poucos os cientistas que manifestam a consciência de que ao lado de pessoas competentes e preocupadas com o bem da humanidade, há outras como o italiano Antinori mais preocupadas com a autopromoção, lançando descrédito sobre as ciências e os cientistas. Eis algumas destas conclusões:

• O ser humano é mais complexo do que se supunha;

• As caraterísticas humanas, bem como as doenças e

anomalias, são resultantes não de genes determinados e

isolados mas de uma infinidade de combinações e variáveis, de

oásis e desertos;

• Em vista disto é preciso acabar com expectativas ingênuas de

curas miraculosas de terapias genéticas. É a eterna tentação

de vencer na vida sem fazer força;

• Avançamos muito, mas ainda sabemos muito pouco sobre

todo este complexo universo genético. Os genes são apenas

um rascunho tosco de um ser vivo e complexo. Ou como

afirma Collings, comandante do Projeto Genoma, o genoma é

um texto de medicina escrito numa linguagem que ainda não

deciframos totalmente.

Eu diria: todo este universo dentro do qual se localiza a questão da clonagem é como um livro que ainda não foi lido porque só é encontrado numa biblioteca que ainda não foi construída. Traduzindo: a Genética, como ciência, encontra-se ainda na infância. Ademais muitos dos nosso conhecimentos nos provém de pesquisas feitas com plantas e animais.

As chances de sucesso na clonagem humana são tão pequenas que é irresponsável encorajar as pessoas a acreditarem nesta possibilidade. Muito provavelmente um clone humano já traria incipientes desde o nascimento todas aquelas doenças degenerativas mais comuns de uma pessoa adulta: reumatismos, artrites, diabetes etc.

Talvez aqui se encontre uma perspectiva que sustente nossas esperanças de sanar tantos males. Entretanto, mesmo nesta compreensão de clonagem terapêutica seria bom não nos esquecermos dos riscos acima assinalados, e acrescentar mais duas interrogações. A primeira diz respeito aos milhões de crianças e adultos que teriam tudo para viver uma vida normal, e que no entanto, por razões conhecidas, apenas vegetam, martirizados pela miséria e pela fome. E isto sem falar de que os mesmos laboratórios que geram a vida acabam promovendo terríveis engenhos de morte. A segunda: o ser humano não é uma máquina composta de peças mecânicas que possam ser substituídas a qualquer momento e numa oficina qualquer.

A questão da qualidade de vida não diz respeito apenas à Genética, mas remete a todo um contexto sócio-econômico-cultural-político e religioso. Querer resolver tudo pela genética e negligenciar os caminhos convencionais pode ser uma tentação fatal. Fazendo um paralelo a uma expressão de Jesus Cristo poderíamos nos perguntar: De que adiantaria irmos repondo indefinidamente nossos órgãos defeituosos se não conseguirmos construir um mundo de amor e de paz?

O autor possui Doutorado em Teologia Moral e é especialista em Bioética. Escreveu, entre outros, o livro “Bioética. A ética a serviço da vida” (Ed. Santuário, 2004).