A CARNE É FRANCA

Pode ser, realmente, que não pensemos convergente e nosso mal, nosso único mal, seja esse justamente. E em teoria, posso até parecer condescendente, mas a prática...ah, minha querida, esta sim é árdua, desafiadora, contínua. Há em mim um coração igual que em ti, coração este feito de carne, ora pusilânime, mas atuante peito adentro. De carne. E a carne não mente. Por isso reluto em aceitar que sejamos assim mesmo, um tanto quanto diferentes.

Pode ser, de fato, que nada gire em torno de nós e não tenhamos de rezar para afastar os inimigos. Pode ser inclusive que nem tenhamos amigos. Amor, nunca soube orar, talvez, quiçá, seja eu um tédio triste, mero infortúnio, um desleixo divino. Amor, se assim te chamo nem sei se é por te amar, nem sei se é assim que amo. De minh’alma nada conheço, nem se a possuo tampouco. Só sei de mim o que vejo e aquilo que mal toco.

Em verdade, confesso-te, conheci o caráter quando o mencionaste naquele jantar. Fiquei calado, tu estranhaste quando,em silêncio, me retirei. Mentira, não engasguei, nem meu canário morreu. Só fui ter com o dicionário bem como daquela vez em que falastes em paixão, carinho, desejo...

Sim, me fui. Agora que já sabes, não me culpes assim... tantos outros fazem igual e nunca revelaram , nem revelarão. Somente eu devo ter compreendido o real sentido de sinceridade - palavra que nem consultei. É, porém, talvez seja só ingênuo, um pobre diabo que sobrevive mediante a crença desse elo, crença que de tão pertinente soa-me como doença, já soa-me incurável...

Nesta carta, anjo, até rimei em alguns de meus dizeres tontos e desconexos e sei que gostas de rima. Também devo gostar, quiçá. Dizem que é bom rimar.

Já nem me importo onde minha lágrima irá cair, se no desejo, no gostar, no amor... não entendo bem tantos verbetes e tanta divagação. Entretanto, sei que há um coração...homessa! Se não é que aprendi a orar!? Que chegue na carne pulsante , em tua vida , tuas vísceras latejantes, pois nessa eu acredito. Creio na carne, na tua carne mais secreta lavada por meu pranto. Na minha carne rude, indiscreta que faz preces por um canto; desconhecedora do belo, limitada, tacanha, porém carne, meu amor, carne igual a tua, em busca do elo. E a carne não mente. Eis que nada mais preciso saber se disso sei. A carne não mente. Que se danem os dicionários e as teorias de amor! A carne não mente. Se estamos juntos, unidos pelo coração o que nos irá abster dessa verdade incontestável?! Nada, não adianta...aceite, amor, a carne é franca.