AO TIO LERO

Paulo Afonso, 31 de Julho de 2013.

Meu querido tio Lero,

Aurelino Guedes do Nascimento, como costuma se apresentar. Eu me lembro das inúmeras vezes que o senhor chegava e partia para São Paulo, sempre com suas narrativas engraçadas ás vezes repetidas sobre a viagem e a vida em São Paulo. A Rua Augusta, a Avenida Paulista, o metrô na Estação da Luz, a Vila Mariana, a Avenida São João... Tantos foram os casos passados e narrados para nós, crianças do interior, que nossa imaginação infantil já imaginava esses lugares lendários como conhecidos, visitados. O senhor é um “contador de casos”, narrava a história de uma vida, uma vida de nordestino sem “muita leitura”, como costumava dizer, mas que aprendeu a viver e amar uma cidade grande.

Quantas vezes fiquei esperando inquieta por sua chegada.

-Lero chega segunda- dizia minha mãe. E nos preparávamos todos para receber-te.

O senhor trazia, antes de tudo, alegria, mas trazia também, notícias de amigos e familiares que também moravam por aquelas bandas.

-Maneca, sabe quem eu vi? Fulano de tal, tá gordo, pele assentada! Tá é bem lá em São Paulo, viu?

Meus pais estavam sempre ansiosos pelas notícias e pelas encomendas: um Moto Rádio encomendado como uma das 7 maravilhas do mundo só encontrada na metrópole paulistana; um relógio Oriente que foi adquirido ou levado pra conserto.

O senhor também trazia roupas para doação – uniformes de firmas que vestiam o nordestino nos trabalhos duros do sertão; botas sob encomenda pra pés sofridos e desproporcionais para os padrões da indústria de calçados ou simplesmente para bolsos com poucos recursos. Era uma farra presenciar a abertura das malas e tirar dali uma peça trazida especialmente para cada visitante que, pouco a pouco, vinha para lhe visitar. Eram noites de prosa e dominó.

Eu era só uma menina, nada do que o senhor trazia me servia, mas o senhor me deixava cheirar um pó, que agora esqueci o nome, só pra espirrar. Era uma espirradeira total: eu, meu pai e quem mais quisesse se divertir com o “atchim”.

O senhor costumava colocar apelido nos meninos das redondezas, principalmente nos agregados e vaqueiros das “fazendas” Boa Lembrança e Boa Esperança: Chá Preto, Chupetinha, Vassourinha, Passo Triste e Pensamento (dois irmãos) e a lista renovava a cada retorno. E debochava dos modos acabrunhados e “malamanhados” dos rapazes.

- Mas olha pra esse rapaz! Como vai arrumar uma namorada de sandália havaiana! Não calça um sapato!

O senhor era uma celebridade entre nós, principalmente para mim. Andava sempre alinhado, de camisa por dentro, sapato no pé e claro, perfumado. Era vaidoso e não escondia a fama de namorador e farrista. Usava tinta no cabelo, barba sempre feita, unhas asseadas. Nada se comparava ao meu pai, que não tinha preocupação em se apresentar com roupa de lida ou “domingueira”.

- Isso foi em outros tempos, quando eu dançava um forrozinho! Hoje, que faço eu, puxando de uma perna? – dizia o senhor em tom de auto deboche e todos caiam na gargalhada.

Falava sempre com amor e admiração dos netos, bem criados e educados:

- Meus netos não fazem isso, lá a lei é dura! Meu neto sai muito cedo pra estudar. Gleide leva tudo pra escola, pra balé. Ela dirige pra todo lugar.

O senhor montava cavalo como um lorde: bom cavalo, bons arreios, boa manta e claro, bom cavaleiro.

Tratava seus bichos com muito zelo e não admitia judiação:

- Isso não se faz com um bichinho bruto! Um vaqueiro desse comigo, não dura! – dizia ao presenciar maus tratos com bois ou cavalos.

Quando finalmente se mudou de vez para roça, o senhor e minha amada Tia Amália, formavam um casal pitoresco, quase perfeito, um implicando com o outro, mas sempre juntos. Lembro-me de o senhor sair andando na frente para abrir os colchetes enquanto tia fazia sua caminhada matinal. Do senhor deitado em sua insubstituível rede com o rádio sobre si ao fim do dia. Minha tia ao lado, sentada no banco vendo o sol se por e os bichos se recolherem. Ela sempre dizia o quanto amava aquela parte do dia, o quanto isso a confortava naquela parte da vida.

- Isso é o que mais gosto. Desse momento de tranquilidade. Velho não tem mais que sonhar. Deixo os sonhos pra você que é jovem. – dizia ela com o doce sorriso, sem lamentação, era só uma constatação de sabedoria. Como eu amava tê-la, encontra-la, ouvi-la, receber o carinho daquelas mãos tão macias... Mas ela se foi e nunca poderá ser substituída...

Hoje, o senhor está lutando bravamente contra esta doença. Mudou-se para a cidade, por conta do tratamento, precisa se deslocar com frequência à capital. Sua pele está pálida, seu cabelo ralo, branqueou. A quimioterapia o deixa abatido e sente frio em pleno sol. Mas a alegria costumeira ainda lhe faz morada e entre um dominó e outro, conta casos e dá risada.

Meu querido tio, te vejo tão pouco. Mas eu te amo, amo essa força e alegria que te habita. Que Deus lhe conceda um pouco mais de saúde, para te termos conosco um pouco mais.

Com amor, sua sobrinha,

Ana Cátia