Carta amanhecida para mãe e filhos

Um dia a gente acorda e não tem mais 20 anos.

Os filhos cresceram e se foram. Netos chegaram.

As rugas estão se estabelecendo no mapa que anuncia o passar do tempo.

E o tempo parece mais do que escasso.

Neste momento, a mente, vilã de quem pensa,

retoma momentos passados e quase não vislumbra futuro.

Tudo parece ir em direção ao fim.

Aquieto-me em meio às minhas queixas, porque não servem para nada além disso.

Um dia a gente sonha que a mãe - a nossa - tinha duas batas da mesma cor.

E lembra, vagamente: uma era rosa e a outra amarela.

Lembra, também, que costumavámos andar de mãos dadas,

mas agora as mãos velhas e enrugadas, de ambas, não mais se tocam.

E aí pensa nos filhos.

nas noites e dias achados e perdidas, no cuidado, no amamentar

nas vezes em que se corria até o berço para ter a certeza de que respiravam.

Aonde estão as crianças?

Neste instante, somente aí, o tempo caçoa imperativo de nós.

E não se trata de arrependimento.

Apenas da constatação de que muita coisa, muita mesmo, não vale sequer a pena.

E aí a gente percebe que os nossos filhos, que também já fomos, não são mais aquelas crianças. Eles têm opiniões. E são tantas que até se cruzam em nossas mentes como palavras cruzadas do nível impossível.

É o momento em que rezamos para pedir que eles não nos desconheçam.

Para que eles, a quem amamos incondicionalmente, não faça de nós bonecos do The Sims, repletos de defeitos porque, a essa altura, quais qualidades nos vai?

Acordei hoje com uma dor enorme.

Perdi quase tudo o que pensava ter e, uma fez perdido, não o tinha ou tive de fato.

Não quero contatos exclusivos nem palavras de afeto.

Isso já não apazigua a sensação certeira do inevitável.

Não quero abrir a caixa de mensagens em busca de Smiles.

Prefiro guardar os sorrisos captados nas fotos antigas e mofadas,

quando os filhos ainda tinham tempo para dispor e podíamos ouvir suas vozes

e conversar sobre o pão fresco e quente da padaria vizinha.

Acordei hoje sem rastros.

Em meio a imensas fronteiras que não são mais possíveis de serem ultrapassadas.

Acordei com a imagem de minha mãe

de calça marrom, bata rosa, de mãos dadas

num tempo em que havia tempo para atravessar a rua acompanhada e segura.

Lembrei das idas à escola, as que fui e as que levei meus filhos.

Da angústia na compra da lista do material escolar.

Do medo em não conseguir dar conta da Educação, minha e deles.

Um medo de filha e de mãe.

E tive vontade de enroscar minhas mãos nas da minha mãe, mas já é tão tarde.

E a dos filhos? Tal e qual.

Todos vivos e distantes,

como se tivéssemos nos tornado estranhos,

porque as nossas escolhas, assim o determinaram.

Não, não tenho tempo para chorar. Não mais.

Vivo. cada dia, como se o próximo não fosse vir.

Não quero mais catar palavras frias nas caixas tão modernas das mensagens.

Se não posso ter o aconchego, prefiro a confinação do silêncio

que só o coração entende e ouve.

Sozinho, é verdade, mas bem mais verdadeiro.

Iza Calbo
Enviado por Iza Calbo em 16/09/2013
Código do texto: T4483739
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