« A soma da nossa vida é de setenta anos,
os mais fortes chegam aos oitenta;
mas a maior parte deles é fadiga e dor,
passam depressa e nós desaparecemos
»

(Sal 90 [89], 10)

 
 
Amigo Obery Rodrigues!
 
 
     Quando este salmo foi escrito setenta anos era considerado muito tempo e muitos não os superavam; hoje, graças aos avanços da medicina e melhores condições sociais e econômicas, a vida ampliou-se notavelmente. Porém, é sempre verdade que os anos passam rapidamente; o dom da vida, apesar da fadiga e dor que a caracteriza, é belo e precioso demais para que dele nos cansemos.
 
     Sendo hoje (20/09) o marco de sua chegada a este plano, senti o desejo de conversar com o senhor, mas os afazeres diários me impedem de ir até Natal desfrutar de sua gentil e carinhosa companhia, então o faço através de carta, relembrando que nosso primeiro contato se deu através da palavra escrita. Faço-o, antes de tudo, agradecendo a Deus pelos abundantes dons e oportunidades que Ele me concedeu até hoje, dentre eles o de conhecer pessoas como o senhor.
 
     Percorro novamente com a memória as etapas da minha existência (meio século já pode ser considerado um bom percurso), que se entrelaçam com muitas histórias do século passado –  palco comum de maior parte de nossa existência – , e encontro, neste filme que se apresenta em minhas lembranças, pessoas que marcaram minha vida, algumas delas particularmente queridas: são lembranças de eventos ordinários e extraordinários, de momentos felizes e de factos marcados pelo sofrimento.
 
     Neste momento em particular meu pensamento dirige-se com afeto ao senhor, a quem escrevo esta carta, principalmente para dizer de meu carinho, respeito e orgulho e tê-lo como amigo ou talvez apenas para exprimir a minha proximidade espiritual com o intuito de quem, ano após ano, sente crescer dentro de si uma compreensão sempre mais profunda desta fase da vida e nota consequentemente a necessidade de um contato mais direto com aqueles que ultrapassaram a linha de chegada da chamada “melhor idade” para refletir sobre coisas que são de comum experiência, tudo colocando sob o olhar de Deus que nos envolve com o seu amor, e com a sua providência nos sustenta e conduz.
 
     Parece-me, a esta altura da vida, ser espontâneo esta volta ao passado para tentar uma espécie de balanço de nossas vidas. É como se esta visão retrospectiva nos permitisse uma avaliação mais serena e objetiva de pessoas e situações encontradas ao longo da caminhada.

     O passar do tempo parece suavizar os contornos dos acontecimentos, amenizando os contratempos dolorosos. Entretanto as cicatrizes e tribulações estão amplamente presentes na vida de cada um de nós. Às vezes trata-se de problemas e sofrimentos que põem à dura prova a nossa resistência psicofísica e podem fazer estremecer nossa fé. Mas, sou uma eterna otimista e a experiência já me ensinou que até as próprias penas quotidianas, com a graça do Senhor, contribuem frequentemente para nosso amadurecimento e fortalecimento de nosso carácter.
 
     Para além dos acontecimentos pessoais, a reflexão que mais se impõe é a que se refere ao tempo que passa inexoravelmente. “Tempo que foge irremediavelmente”. Estamos imerso no tempo: nele nascemos, vivemos e morremos (espero que esta parte demore ainda um bom tempo). Ao nascermos fixamos uma data primeira - o alfa, com a morte a última - o ómega, o início e o fim de nossa passagem pela terra.

     Mas, se a existência de cada um de nós é tão limitada e frágil, conforta-nos o pensamento que a Deus pertence o tempo e a eternidade; e a existência humana, apesar de sujeita ao tempo, é colocada por Cristo no horizonte da imortalidade, por isso Ele “fez-Se homem entre os homens, para reunir o fim com o princípio, isto é, o homem com Deus”.
 
     Tivemos o privilégio de nascer em um século marcado por grandes transformações e que testemunhou eventos numerosos e extraordinários. Como muitos outros tempos da história, ele registrou luzes e sombras. Nem tudo foi escuridão. Muitos aspectos positivos compensaram o negativo ou dele surgiram como uma benéfica reação da consciência coletiva. Mas também é verdade — e seria tão injusto como perigoso esquecê-lo — que houve sofrimentos indizíveis, que afetaram a vida de milhões e milhões de pessoas.
 
     Apesar de todas estas mudanças estamos muito distantes de conhecer todos os benefícios da paz e da liberdade. Se estas lembranças e dolorosas realidades atuais nos entristecem, não podemos esquecer que o nosso século viu levantar-se no horizonte bastantes sinais positivos, que constituem novas fontes de esperança para a humanidade. Assim, cresceu — mesmo entre tantas contradições, especialmente quanto ao respeito pela vida de cada ser humano — a consciência dos direitos humanos universais, proclamados em solenes declarações que comprometem os povos. Por isso meu amigo não falemos de dor, mas de amor, conquista e superação.
 
     Muitas foram as mudanças testemunhadas por nós, portanto, são muitos os motivos pelos quais devemos agradecer a Deus. Apesar de tudo e de todos, vivemos um período que se apresenta com grandes potencialidades de paz e de progresso. Afinal não podemos esquecer que “as tribulações não só não destroem a esperança, mas são o seu fundamento”. Portanto, é sugestivo que, enquanto nossa vida se encaminha para o crepúsculo e já se entrevê a aurora de uma nova estação para a humanidade, nos detenhamos a meditar sobre a realidade do tempo que passa rápido, não para resignar-nos a um destino inexorável, mas para valorizar plenamente os anos que nos restam para viver.
 
     Olhemos para a mudança da paisagem natural e vejamos a estreita semelhança entre o biorritmo do homem e os ciclos da natureza, à qual ele pertence! E o mais grandioso é perceber que apesar da semelhança nós nos distinguimos de toda a realidade que nos circunda, pois somos imagem e semelhança de nosso Criador, portanto, sujeitos conscientes e responsáveis.  
 
     Orgulhe-se de ser guardião de uma memória coletiva, pois, se a idade o priva de algumas atividades a experiência o preparou para o convívio mais sábio e sereno com as coisas terrenas. Amante que sou das palavras não seria exagero dizer que o passar do tempo vai nos transformando em “bibliotecas vivas”, fonte de sabedoria, guardiões de um património inestimável de testemunhos humanos e espirituais e o senhor representa isto para todos nós que o conhecemos.
 
          Quantas histórias o senhor guarda em suas valorosas lembranças!? Suas lembranças, relatadas em textos, é resgate de uma época, registro da história, não apenas sua e de sua família, mas de uma comunidade, de um povo, de um estilo de vida. Perdoe-me amigo por me alongar nesta carta, sei que fui repetitiva e me tornei cansativa (um desrespeito a sua idade para quem pretendia apenas enaltecer a beleza do outono da vida), mas falar do tempo, da amizade e do respeito que tenho pelo senhor é uma tarefa difícil, mas extremamente prazerosa e acabei sendo egoísta.
 
     Feliz Aniversário meu amigo. Fica aqui a minha promessa de, independente de qualquer compromisso, estar presente a sua festa de 90 anos. Eu e nossos amigos mossoroenses, mesmo Raimundo Antônio, responsável direto pela entrada do senhor em minha vida e tão avesso a sair de sua toca para eventos sociais, terá que se fazer presente. Quem sabe, até a misteriosa Celyme?!
 
     Um grande e afetuoso abraço (extensivo a toda sua maravilhosa família) e que Deus continue abençoando sua vida.  Parabéns, saúde e paz!
 
Sua fã e admiradora
 
Ângela Rodrigues Gurgel


 
Ângela M Rodrigues O P Gurgel
Enviado por Ângela M Rodrigues O P Gurgel em 21/09/2013
Reeditado em 22/09/2013
Código do texto: T4492165
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