Curvas do Pensar

Gosto de estar aqui sozinho, andando sem rumo. Existem muitos lugares bonitos ao redor de Burarama, que é um vale cercado de altas montanhas, geralmente de difícil acesso. É bonito daquela beleza que mexe com os pensamentos. Mas resolvi estar em paz, hoje.

Não há pressa por aqui. Aliás, daqui de cima tudo parece pequeno — até os problemas da vida. Daqui de cima a gente pode minimizar tudo. Não há pressa para nada; o tempo parece parado, esperando que a gente o movimente. Se nos aquietamos, nada se move. É o lugarzinho ideal para se morar, esquecendo tudo o mais que existe.

Mas agora já é tarde. O sol está se pondo atrás da montanha à esquerda e logo será noite. Tenho que ir-me agora, pois o sol já vai sumindo. A descida à noite é meio perigosa. São muitas as curvas dessa estrada. Ela vai serpenteando lá embaixo: some aqui e daí a pouco reaparece ali, para logo em seguida tornar a sumir. Daqui a pouco estarei desaparecendo e tornando a aparecer nessas curvas.

Lembro Fernando Pessoa: A morte é a curva da estrada...

Você está lá, atrás dessas curvas. E é como se estivesse morta para mim. Se não posso lhe ver, é como se você não existisse, não vivesse. Estamos mortos em vida, eu para você, você para mim. Eis a morte em vida.

A pior morte é a morte em vida, o vazio. Nascer, conhecer pessoas, nos afeiçoar... Depois, de uma hora para outra, a curva da estrada, o desaparecer, o não ser mais visto. Do nada para o nada. No fundo, todos nós já nascemos com a certeza do que há depois da curva da estrada: o vazio, o nada.

A mim, a curva da estrada assusta. Mas não é pela morte em si mesma: é pelo não ser mais visto, é pelo que ela nos tira. Ela leva embora a amizade, o amor, a sabedoria, a experiência, as dores e as alegrias; e leva também momentos que não chegaram a existir; leva tudo o que poderia ser feito e não foi possível, porque não houvera tempo. A curva na estrada nos tira as lembranças vivas, deixando só o pensamento do que poderia ter sido.

Quantas vezes eu “matei” você! E quantas vezes você ressuscitou! Às curvas da estrada contrapõem-se as do pensamento. E as curvas do pensamento são tantas, tantas... Quem vai, volta. Basta querer. Basta à gente querer. É só fazer a curva e reaparecer. A toda hora você me reaparece nas curvas do meu pensamento. Tantas vezes você já estava lá no fim da estrada e fez meia-volta. E tantas vezes eu sumi na curva, sem morrer. Não, não basta sumir na estrada. Isso não torna a viagem menos pior, não faz a dor ser menor, não faz a gente ser melhor; enfim, não muda nossa vida. Não, a curva da estrada não é a morte. Deixar de ser visto não é estar morto. Mesmo morrer não significa não ser visto. Você sumia na curva mas eu ficava escutando você, escutando suas passadas (elas “toavam que retumbavam” em meus ouvidos). Não adianta sumir. O que os olhos não mais vêem, o coração ainda continua a sentir. A saudade não desaparece, não se esconde nas curvas. A saudade é uma reta sem fim. Eu sigo reto. Andando e vivendo. Caminhando nessa estrada e vivendo mais e mais intensamente. Espero chegar um dia ao final dessa reta, dessa estrada. Espero um dia chegar à curva definitiva, se ela existe, aquela além da qual não há volta. Mas também vou seguir pela estrada do pensamento, cheio de curvas que vão e voltam.

O trenzinho da minha vida segue resfolegando, quase andando, quase parando, por essa estrada sinuosa, carregando minha esperança. E a esperança não morre nunca. À cada baldeação, à cada estação, à cada parada carrego ou descarrego um pouco delas; mas acabar, acabar, elas não acabam. Levo-as para lá e para cá, repetindo estradas, curvando as mesmas curvas, passando e repassando no mesmo ponto, até que lhe encontre na estação final. Esse é meu destino.

É esse querer e não querer, essa vontade de ficar e partir, esse medo e desejo... são essas as curvas do pensamento.

(Deslize nessas curvas virtuais à vontade. Aproveite bem. Porque, se algum dia, se algum dia você pisar na minha estrada real, saiba que dela você não sairá nunca mais. Acabarei com as curvas, farei um círculo, uma pista oval, e você estará presa para sempre. Eu estarei no centro, e você nunca mais sumirá das minhas vistas.)

Marcelo Grillo
Enviado por Marcelo Grillo em 26/04/2007
Código do texto: T465368