A veste especial - Carta 104

Carta 104

Assunto: A veste especial

Um padre amigo, da região metropolitana de Curitiba, escreve,

solicitando subsídios exegéticos sobre a figura da “veste

especial” preconizada na parábola do banquete do casamento

do filho do rei.

Caro amigo,

Pax et bonum!

Aceitar ou não um convite, geralmente revela nossa disponibilidade e o apre-ço que se dispensa àquele que convidou. Uma vez convidei umas pessoas para co-mer um churrasco comigo, em minha casa. Elas ficaram de confirmar, mas nunca o fizeram, deixando claro que não estavam interessados na minha recepção. Nunca mais os convidei. Deus, por certo não é tão vingativo assim, mas também pode can-sar de convidar pessoas que não atendem nem se interessam por seu convite.

Quando o rei entrou para ver os convidados, observou aí alguém que não estava usando o traje de festa. E lhe perguntou: “Amigo, como foi que você entrou aqui sem o traje de festa?” Mas o homem nada respondeu. (Mt 22,.11s).

Uma das liturgias da Palavra do tempo comum (cf. 22, 1-14) contempla jus-tamente esse chamado. Mais do que uma invectiva contra o desprezo dos judeus à vinda do Cristo-Messias, a parábola dos convidados ao banquete de casamento do filho do rei nos inquieta pois retrata atitudes de nosso tempo. A narrativa de hoje é um aviso àqueles que se sentem seguros em seu rígido “cristianismo” e em sua es-piritualidade formal. A simbologia da “veste adequada” é o ponto alto da reflexão desta parábola. A partir do v. 11 a coisa muda de figura. A ênfase agora é uma si-tuação de “juízo”. O homem que atende ao convite deve vestir a veste nupcial: as obras da justiça devem acompanhar sua fé (cf. 3,8; 5,20; 21,28s).

O uso da veste aponta para o ato de pertencer à Igreja num sentido mais am-plo. Essa pertença não se refere ao mero elo com o templo em si, mas ao fazer parte de uma reunião de convidados – a ekklesia – comunidade que segue o Senhor em busca da santidade. Ser Igreja não é só pertencer a grupos, serviços ou movimen-tos, receber sacramentos ou participar de intermináveis reuniões. Fazer parte da Igreja do Senhor (ekklesia tou kiriou) é revestir-se daquela santidade que Jesus veio ensinar. Nesse particular, a veste nupcial é a graça, o batismo levado a sério.

Para derrubar nossas certezas vemos, nos vv. 11-14 que até os novos esco-lhidos poderão ser excluídos se não se perfilarem à prática da nova justiça do Rei-no. Não basta apenar ser chamado; é preciso estar atento às exigências da convo-cação. Muitos gostam de dizer que seguem a Jesus, apesar de seguirem a si pró-prios, isto é, praticando uma religião cujo modelo eles mesmos traçaram. São cha-mados a participar mais intensamente do Reino mas colocam, um a um, óbices a essa comunhão, sob as mais diversas desculpas, que vão, desde o “não tenho tem-po, até o “não é meu carisma”. Tudo para se omitir e, em última análise, rejeitar o chamado.

A veste adequada encobre o aspecto misterioso da narrativa. Há que ser compreendida essa figura. A mensagem da parábola nos revela que o convite à vida é dom, é convite mas também é compromisso. O rei que celebra o casamento de seu filho é Deus. O convite à festa é o apelo do evangelho, ao passo que os convi-dados somos todos nós. Se a entrada na Igreja de Cristo é facultada a todos, não é suficiente uma simples presença.

É necessário o uso de uma veste adequada. Qual é esta veste? No contexto do evangelho de Mateus, trata-se da prática do amor e da justiça. Aqui, a parábola torna-se uma advertência à comunidade cristã. Para pertencer à Igreja do Messias é necessária a conversão, que se espelha em atos de justiça e da indispensável generosidade. É necessário, no entanto, acolher esse chamado com alegria e mostrar-se disposto a participar do esplendor da festa da graça, do amazing grace, como dizem os teólogos ingleses. O apóstolo Paulo, se refere a essas exigências, recomendando

Coloquem o capacete da salvação e a espada do Espírito... (Ef

6, 17)

Uma vez participei de um cruzeiro marítimo. Para uma determinada noite havia a obrigatoriedade de traje de gala. Um rapaz se esqueceu de colocar um sapato social na mala: apresentou-se de smoking e chinelos; foi proibido de entrar no salão. De outra feita, uma adolescente se apresentou com um diminuto shortinho na missa: foi convidada a se retirar. A roupa nupcial da parábola, mais do que uma exigência formal, é uma veste de salvação (cf. Is 61,10). O traje da festa indica as disposições com que se há de entrar no Reino. Se alguém não as possuir, mesmo pertencendo ao rol dos convidados (à Igreja), terá seu ingresso vedado, e será con-denado no dia em que Deus julgar a cada um.

Essas disposições são, em última análise, a correspondência ou não aos apelos da graça. A partir do v.11, há uma forte conotação escatológica e suscita-nos uma idéia de juízo. Alguns comentaristas chegam a dizer que a partir do v. 11 tem início uma parábola distinta do texto ante-rior. Há quem afirme que esta perícope não fazia parte da parábola original. Entre os escritos judaicos não há referências ao uso de vestes especiais para comparecer a uma festa de casamento; o convidado devia estar limpo, usando roupas boas, po-rém normais...

No v. 12 o rei indaga um dos convidados: como entraste? Talvez ele nem ti-vesse entrado pela porta, mas furtivamente. Parece que todos tinham a roupa espe-cial, recebendo-a na porta... Teria ele se recusado a usá-la? “Por que estás sem o traje da festa?” O homem não soube responder. Que tipo atitude é exigida para satisfazer aquele que convida? Conversão, justiça, comunhão e alegria, fatores que caracterizam a missão do cristão. Essa mudança produz conversão e santidade.

Qual o significado dessa roupa? Pode ser alguém que quer aparentar uma situação que não é real? Um falso crente, um hipócrita. O livro do Eclesiastes (cf. 9,7s) fala em roupas brancas, uma alegoria. Não se vai para a mesa vestido de qualquer jeito. A cultura do Oriente Médio (a partir do Egito) preconizava roupas brancas, de linho puro, representando a alegria, a disponibilidade, a atenção ao convite

Regozijar-me-ei muito no Senhor, a minha alma se alegra no meu

Deus; porque me cobriu de vestes de salvação e me envolveu

com o manto de justiça, como noivo que se adorna de turbante,

como noiva que se enfeita com as suas jóias (Is 61,10).

É o traje exigido para o banquete. É este traje é o traje da salvação. Quando se aceita o convite se veste do traje. A vestimenta é tanto posicional como disposi-cional – posiciona-se aceitando o convite, reveste-se pela disposição ao convite. Quem dá o traje é o Senhor, mas quem se veste é você. O detalhe do homem des-provido do traje nupcial aplica-se a todos aqueles que queiram entrar na festa (o Reino dos céus) ser ter preenchido as condições necessárias para o ingresso nas festividades. O resultado é a eterna miséria. O que significa a figura da “veste nup-cial?”

 A preparação do espírito para o encontro definitivo. Sem ela é

impossí-vel permanecer no local da grande festa.

 Ali vai ficar demonstrada a eficácia da Palavra de Deus em

nossa vida.

 A constatação do uso ou não dessa veste tem a força de um

julgamen-to, onde será cotejado o que o ser humano fez da

sua vida com aquilo que Deus projetou para ele.

 A veste é limpa, branca e reveladora da mais absoluta pureza;

Para quem deseja efetivamente entrar na festa, como adquirir a roupa ade-quada? O homem, depois da grande tribulação – a vida humana, os pecados, os obstáculos à graça, as angústias – deve alvejar suas vestes no sangue do Cordeiro (cf. Ap 7,14). Alvejar no sangue? Sangue suja, mancha, ao invés de limpar! O san-gue de Jesus é diferente: ele limpa, purifica, salva e resgata. Como? a) crendo no senhorio de Jesus; b) glorificando-o e reconhecendo-o como o único Salvador; c) aclamando o poder de seu generoso sangue; d) proclamando sua Ressurreição; e) entronizando-o como Senhor da nossa vida e condutor da história. Quem age desta forma terá alvejado suas vestes no generoso sangue do Cordeiro, vestindo a imacu-lada veste nupcial, tornando-se assim digno de entrar na festa. A disposição e a decisão de vesti-la são nossas.

Ademais, fortaleçam-se no Senhor e na força do seu poder.

Vistam a armadura de Deus para poderem resistir às manobras

do diabo. A nossa luta, de fato, não é contra homens de carne e

osso, mas contra os principados e as autoridades, contra os

dominadores deste mundo de trevas, contra os espíritos do mal,

que habitam as regiões celestes. Por isso, vistam a armadura de

Deus para que, no dia mau, vocês possam resistir e permanecer

firmes, superando todas as provas. Estejam, portanto, bem

firmes: cingidos com o cinturão da verdade, vestidos com a

couraça da justiça, os pés calçados com o zelo para propagar o

evangelho da paz; tenham sempre na mão o escudo da fé, e

assim poderão apagar as flechas inflamadas do Maligno.

Coloquem o capacete da salvação e peguem a espada do

Espírito, que é a Palavra de Deus. Rezem incessantemente no

Espírito, com orações e súplicas de todo tipo, e façam vigílias,

intercedendo, sem cansaço, por todos os cristãos (Ef 6,10-18).

A vestimenta nupcial é a santidade sem a qual ninguém verá a Deus (Hb 12,14). O convite é para todos:

Depois destas coisas, vi, e eis grande multidão que ninguém podia

enumerar, de todas as nações, tribos, povos e línguas, em pé

diante do trono e diante do Cordeiro, vestidos de vestiduras

brancas, com palmas nas mãos (cf. Ap 7,9)

A veste, indispensável para a permanência na festa, é o amor, e tudo que dele dimana (justiça, perdão, acolhida, etc.). Não basta atender o convite para participar da festa, nem ser pobre ou rico. A quem não estiver vestido com o traje requerido não será permitido o ingresso na festa. Assim podemos incluir quando o evangelista afirma que “muitos são os chamados mas poucos serão escolhidos”.

Muitos ouvem o chamado, querem participar, até conhecem a proposta de Deus, mas não se comprometem, são incapazes de se libertar daquilo que os prende ao materialismo e ao pecado. Em nosso tempo, optar pela justiça, segundo o modelo de Jesus, pode significar a perda de alguns privilégios. E nem todos estão dispostos a essa renúncia. Nesse aspecto, a veste indica conversão, desejo se tornar-se bom, aberto às necessidades do outro, pureza de coração, sinceridade. O indivíduo sincero é aquele que age sin-cera, sem a cera das máscaras.

Na festa da casa do rei, os criados trouxeram bons e maus (v. 10), conforme já vimos, até encher a sala. Ali os convidados foram distinguidos, não por serem bons ou maus (atitudes passadas) mas por vestirem ou não (atitude atual) a roupa adequada ao evento. No vestibular do Reino não é tão importante ter sido bom ou mau, mas estar aberto à boa notícia. Muitos “bons” poderão se decepcionar nessa hora, afinal, sabemos que

Meus caminhos são diferentes dos caminhos de vocês

(Is 55,8).

O traje nupcial vai simbolizar a conduta de cada convidado, de acordo com o chamado e a função (cf. Ap 15,6; Is 61,10). A exclusão é fruto da não adequação do convidado ao espírito da festa, e é representada pela imagem das trevas, que po-dem ser a morte (cf. Jó 10); o pranto é a reação do excluído, depois que avalia o bem que perdeu, contraposto à alegria dos que permaneceram na festa.

As pessoas que encheram a sala haviam aceitado o convite, aderiam a uma primeira aproximação, mas na hora “h” foi constatado que não preenchiam os requisitos exigidos a um convidado. É interessante notar que os serventes que introduziram as pessoas ao salão não se deram conta do uso ou não da vestimenta. Somente o rei percebe sua falta. Só a visão de Deus enxerga o interior do ser humano, a falta de amor, de sinceridade, o desprezo aos dons divinos.

A parábola toca em um ponto importante: a necessidade de uma “veste nup-cial”, ou seja, alguém que está preparado e deseja participar da festa. A exigência de um traje especial é uma metáfora que visa banir o equivoco da indiferença, onde tanto faz ser bom ou mau para entrar no Reino de Deus, como poderia sugerir num primeiro momento o v. 10, que trata de uma “multidão” de pessoas chamadas à festa. Isto alerta que, apesar do grande número de convidados (o povo escolhido) poucos entrariam no Reino de Cristo. Nesse aspecto, a veste pode ser o batismo, a fé, a conversão e o desejo de santidade. Biblicamente a veste do cristão é a justiça. Estar justificado (por Deus) é requisito para a salvação. Por isso, temos que guardar zelosamente as nossas vestimentas:

Eis que venho como vem o ladrão. Bem-aventurado aquele que

vigia e guarda as suas vestes, para que não ande nu, e não se

veja a sua vergonha (Ap 16.16).

Um abraço fraterno e volte sempre!