O purgatório - Carta 108

O PURGATÓRIO

Um amigo, padre no interior de Santa Catarina, pede subsídios

para refutar afirmações de espíritas e protestantes sobre a

existência do Purgatório.

Apesar de tantos estudos, pregações e farta bibliografia sobre a escatologia cristã, ainda há nos dias de hoje, muita névoa sobre a idéia de purgatório. As pessoas, se não duvidam, custam a crer nesse estágio intermediário, após a morte e antes da glória dos céus.

A Igreja Católica dá o nome de purgatório à purificação das almas que morrem na graça de Deus e na sua amizade, mas ainda são imperfeitas e portanto, precisam ser purificadas. Durante os anos da sua vida conventual, a freira carmelita Maria Anna Lindmayr recebeu inúmeras revelações particulares por parte das almas do purgatório e os seus escritos cedo se consideraram como um importante legado sobre essa matéria para os fiéis da Igreja.

Os católicos consideram que o ensino sobre o purgatório faz parte integrante da fé derivada da revelação de Jesus Cristo que foi pregada pelos apóstolos. Definições dogmáticas foram proclamadas pelos Concílio de Lyon II (1274), o de Florença (1438-1445), e o de Trento (1545-63 ).

O homem deste final de século, tão cético e pragmático, excessivamente tecnicista, custa a crer no céu, uma grandeza revelada pelas Escrituras, e mais diretamente duvida do purgatório, cuja sustentação escriturística é fruto de uma exegese localizada em alguns trechos feita por especialistas.

São Cipriano de Cartago († 258), o primeiro mártir africano, referindo-se a 1Cor 3, 12-14, fala num estágio após a morte como um ignis purgatoris (um fogo que purifica). Tertuliano († 221) fala em um período intermediário entre a morte e a glória, onde a alma é passível de uma purgação de suas faltas.

A Igreja introduziu oficialmente a doutrina do purgatório depois dos Concílios de Florença e de Trento. Essa doutrina, conforme certos trechos da Escritura (cf. 1Cor 3, 15; 1Pd 1, 7) fala em um fogo purificador. No período da patrística do século V d.C., vale salientar, entre tantos, dois textos importantes sobre a teoria do purgatório: “... deve existir um fogo para purificar pequenas faltas”, e “... não duvidemos, pois, em socorrer aos que partiram, e em oferecer nossas preces por eles”. Santo Tomás de Aquino († 1274) afirmava que “o purgatório está ligado ao inferno, de tal forma que o mesmo fogo que a alguns tortura, a outros purifica (in Sth 4).

A teologia protestante não admite acomodações nem hermenêuticas simbólicas, por esta razão, nega a existência do purgatório, pelo fato de o mesmo não vir mencionado explicitamente nas páginas da Bíblia. De fato, a figura do purgatório tem sua fonte de entendimento, mais no Magistério da Igreja, do que propriamente nas Sagradas Escrituras. Há, porém, algumas pistas que não podem ser desprezadas...

Como uma expiação, encontramos alguns textos que se ajustam a essa imagem. Moisés e Aarão duvidaram da palavra de Deus, cedendo momentaneamente à sua falta de fé. A culpa deles foi perdoada (cf. Dt 34, 10ss; Ex 33, 11; Nm 12, 6ss), no entanto, viram-se privados de entrar na “terra prometida” (cf. Dt 34,4; Nm 20, 12s’27, 12ss). Também o rei Davi pecou e foi perdoado, mas teve como pena, perder o filho do adultério (cf. 2Sm 12, 13s). O velho Tobias ensina a seu filho que a esmola o libertará do pecado e da morte eterna (cf. Tb 4, 8-11). Em Daniel (cf. 4, 24) há uma citação semelhante em que a esmola serve como purificação do pecado.

Há ainda, aquele conhecido texto dos Livros dos Macabeus (cf. 2Mc 12, 40-43) onde imagens de ídolos foram encontradas sob as vestes de alguns soldados mortos em batalha. Judas Macabeu recomenda que se faça uma grande coleta em dinheiro, para ser remetida ao templo em Jerusalém, como esmola, e assim obter o perdão dos pecados dos soldados mortos.

No Dêutero-Isaías, numa alusão ao perdão dos pecados do povo, na fase de retorno do exílio babilônico, que tanto pode ter um significado político-histórico, mas também teológico, estendido aos tempos futuros.

Terminou o tempo de purgação; foi saldado o débito da sua

culpa; ela (Jerusalém) recebeu da mão do Senhor o castigo

dobrado por seus crimes (Is 40, 2).

No Novo Testamento há, no mínimo, cinco passagens onde, embora não de forma nítida, dá para se observar um sentido de purificação:

Procure entrar em acordo com ele, enquanto estão a caminho do

tribunal; senão o acusador entregará você ao juiz, o juiz o

entregará ao guarda, e você irá para a prisão. Eu garanto: daí

você não sairá, enquanto não pagar até o último centavo (Mt 5,

26s; Lc 12, 59).

... entretanto o operário se salvará, como quem passou pelo fogo

(1Cor 3, 15).

Existem ainda outras passagens, cuja interpretação pode nos levar a imaginar a possibilidade de uma purificação antes do perdão total. Uma delas fala, quando se refere aos “pecados contra o Espírito Santo”, que esse tipo de falta não terá perdão, nem nessa nem na outra vida (cf. Mt 12, 31). Ora, se esse pecado contra o Espírito (descrer da salvação, rejeitá-la, desprezar o sacrifício vicário de Cristo) não tem perdão, nem aqui nem na eternidade, somos levados a crer que, outros, menos graves, tenham perdão depois da morte. Ora, então há pecados naquele estágio cognitivo em que é possível o arrependimento.

Há quem afirme, igualmente, que o “entrar pela porta estreita” (cf. Mt 7, 13) é igualmente uma ruptura com os erros passados. O homem, só livrando-se de tanta carga inútil (pecados, preconceitos, problemas de conduta) pode adentrar na porta estreita do Reino. Isso tanto pode ocorre na conversão em vida, como numa outra chance de conversão, na morte.

A impotência do paralítico em jogar-se na piscina de Siloé (cf. Jo 9, 7), para obter a cura, o grande objetivo de sua vida, poderia significar também uma necessidade de purificação, sem a qual é impossível ir ao céu. Igualmente, lemos no Apocalipse:

Quanto a mim, repreendo e educo todos aqueles que amo (Ap

3, 19).

O Concílio Vaticano II, especialmente a Constituição Lumen Gentium, fala mais em purificação do que em pena ou purgatório.

A tradição medieval é rica em textos espetaculares sobre o efeito da oração sobre as almas do purgatório. Contam que, em uma oportunidade. São Bernardo († 1153) celebrava uma missa em Roma, quando caiu em êxtase, e viu uma escada que ia da terra para o céu, pela qual os anjos conduziam as almas libertadas do purgatório em virtude do sacrifício da missa. Nessa igreja, “Santa Maria escada do céu”, há, até hoje, um quadro que representa essa visão.

Na vida de São Vicente Ferrrer († 1419) há uma narrativa a respeito de uma religiosa, pessoa frívola, que fora “condenada” ao purgatório até o dia do juízo final. Trinta missas libertaram-na. São Domingos de Guzmán († 1234) viu as almas subindo do purgatório para o céu através de uma corrente. Olhando melhor, viu que essa corrente salvadora era um Rosário. Santa Catarina de Gênova († 1312) fala em suas catequeses a respeito do poder purificador do fogo de Deus. O mesmo ardor que queima - diz ela - gera a expectativa da comunhão definitiva. As penas do purgatório - prossegue - são iguais às do inferno, só variando quanto à sua duração.

Os espíritas negam a existência do purgatório, afirmando que Deus é bom e não permitiria que seus filhos sofressem, preferindo acreditar nos absurdos da reencarnação ou da transmigração. E a reencarnação, não é igualmente um sofrimento expiatório? Os espíritas e as religiões orientais têm tentado influir, através dos formadores de opinião, buscando uma releitura do fenômeno purgatório, buscando desmitificá-lo tanto quanto possível.

Segundo eles, a expiação de eventuais faltas é purificada através da reencarnação, que é um argumento por demais débil e até herético, pois nega a misericórdia de Deus, conforme vimos. Além das teorias reencarnacionistas sobre o purgatório, acima aludidas, há os individualistas que afirmam que “o purgatório é aqui”, com os pecados purificados em vida. No extremo do raciocínio, aparecem céticos, ateus e gnósticos negando a existência do purgatório, por se tratar, segundo eles, de uma idéia que peca pala absoluta falta de lógica.

O purgatório é um processo de cognição, amadurecimento e definição, que o homem tem liberdade em assumir ou não. Nossa ressurreição não estará completa enquanto a comparação entre o que Deus projetou para nós e o que nós efetivamente realizamos, não estiver completa. Há males, que deixamos para trás, que precisam ser revistos e expurgados. “Com Deus – ensina Leonardo Boff –ninguém convive se não for totalmente de Deus. É aqui que reside o lugar teológico do purgatório. O homem imaturo carece de madureza; o pecador, da santidade divina. O purgatório significa a graciosa possibilidade que Deus concede ao homem de, mesmo no seio da morte, maturar-se radicalmente, acrisolando-se para a plenitude”.

Por causa da existência do purgatório, é conveniente que, como acontece muitas vezes, não canonizemos precocemente nossos mortos: “Ah! esse sofreu tanto, já está no céu!” É prudente sempre uma consciente atitude de oração, para que na morte, a oração comunitária, no mistério da “comunhão dos santos” ajude o falecido no momento da de-cisão.

Nenhuma realidade após a morte é lógica, do tipo 2+2=4. Acima, porém, de quaisquer normas de purificação, ou de juízos que se venha a formular, em primeiro lugar é preciso ver sempre a infinita misericórdia de Deus. A idéia de “lavar as mãos antes do jantar” ajuda a imaginar a finalidade do purgatório, como situação que antecede o céu. O purgatório foi colocado como que um anteparo teológico entre a vida humana e as alternativas céu ou inferno. Sendo Deus um espírito puro, não irá para seu convívio quem não estiver integralmente puro.

Que fique claro que purgatório não é um já, mas um ainda não. Trata-se, não de um lugar ou estado, mas de uma situação, uma ausência, porém com esperança. Seguramente, conforme formulações da teologia mais recente, não é fogo. A idéia bíblica do fogo, apropriada dos estoicos (tó pyr panta krinei – o fogo [vindo] a tudo julgará) é usada para exprimir, ou uma depuração, ou uma ruptura, cujos efeitos se assemelhem ao fogo.

Para muitos que sofrem, os que são injustiçados e suportam isso com paciência, extraindo de todos os fatos uma pedagogia para suas vidas, esses males podem se tornar um alento para a conversão. O purgatório pode já estar iniciando aqui e é uma purificação que envolve um castigo doloroso, associada à idéia de fogo, semelhante ao inferno. Diversos Padres da Igreja consideram 1Cor 3,10-15 como evidência para a existência de um estado intermediário em que as transgressões leves são purificadas, e assim a alma será salva.

Santo Agostinho descreve o fogo da purificação como mais doloroso do que qualquer coisa que um homem pode sofrer em vida. O Papa Gregório I afirmou a existência de um fogo de purificação para algumas pequenas falhas. Orígenes escreveu sobre o fogo que tem de purificar a alma, São Gregório de Nissa também falou sobre a purgação pelo fogo.

Alguns teólogos interpretaram o fogo tanto como um fogo material, embora de natureza diferente do fogo natural, como uma metáfora para um grande sofrimento espiritual, que atualmente é a visão mais comum. O Catecismo da Igreja Católica fala de um “fogo purificador” e cita a expressão “purgatorius ignis” (fogo purificador) usado pelo Papa Gregório Magno. Ele fala do castigo temporal pelo pecado, mesmo em vida, como uma questão de “sofrimentos e provas de todos os tipos”.

A Igreja Católica ensina que o destino dos que estão no purgatório pode ser afetado pelas ações e intercessões dos vivos. Seu ensino se baseia na prática da oração pelos mortos mencionado em 2Mc 12,42-46 considerada pelos católicos e ortodoxos parte da Sagrada Escritura.

Além destes trechos do Antigo Testamento, a Igreja também justifica a doutrina sobre o estado de purificação final da alma na oração que o Apóstolo Paulo fez em favor de um amigo falecido, Onesíforo, nestes termos:

Que o Senhor conceda misericórdia à família de Onesíforo

porque ele muitas vezes me confortou e não se envergonhou de

eu estar preso. Ao contrário. Quando chegou a Roma ele me

procurou com insistência, até me encontrar. Que o Senhor lhe

conceda misericórdia junto a Deus naquele dia. E quanto aos

serviços que ele me prestou em Éfeso, você sabe melhor do que

eu (2Tm 1, 16ss).