CARTA DE UMA AMIGA



 
          Nós não vivemos no tempo que nos coube, o nosso tempo de viver. Nós não dissemos no tempo que nos coube as palavras necessárias de dizer. Naquele mais do longínquo tempo de nossas vidas eu aceitei todas as tuas partidas para outros braços. Eu aceitei tudo. Comi todos os pães que o diabo amassou. Foram muitos anos, tu sabes disso. Aí, veio-me a Grande Mudança, o mundo virou pelo avesso, eu parti de ti. E vivi e nada foi fácil viver, para dizer o possível de dizer, e tu o sabes, tu o sabes, ao menos o que eu te dei a saber. Eu cri, ingenuamente, que havíamos, enfim, nos tornado o que sempre nos dissemos ser: amigos, os grandes inequívocos amigos que a vida nos destinara, desde o princípio, ser. Então, o que queres de mim? O que me cobras? Sei que nunca aceitaste os meus caminhos para além de ti. O que querias de mim? Que eu passasse a vida a te esperar, em uma espera infrutífera, perdida desde sempre, desde a raiz? Nossa história poderia ter sido outra, certamente. Não o foi. Fui para outro homem, sim, com ele vivi durante muito, muito tempo. Sabes também que outro homem, além desse meu ex-companheiro, ocupou e ocupa, ainda, quiçá para sempre, o meu imaginário: aquele outro cavaleiro medieval. Tu o sabes, ao menos o que te dei a saber. Tu me cobras, sutil e de certo modo diretamente, o que há quase uma eternidade não tens o direito de me cobrar. Como amigo não tens esse direito, menos ainda o de me julgar: és meu amigo. És meu amigo. Eu nunca, em tempo algum, coisa alguma jamais te cobrei nem jamais te julguei. Faz o mesmo, começando por compreender os motivos ocultos pelos quais não tens feito o mesmo. Sê sincero contigo próprio; tudo o mais será consequência disso, de seres sincero, antes e acima de tudo contigo próprio. Não posso voltar aos sentimentos da minha primeira juventude. Eu mudei. Só te posso dizer que continuas sendo importante para mim, agora e como sempre, mas, é preciso que aceites a que sou agora, séculos depois. É preciso que me conheças de novo, que não procures por aquela que conheceste na tua primeira juventude. Demasiados mundos vieram e mudaram aquela jovenzinha. Demasiados mundos, amigo meu, amigo meu. Gostarei muitíssimo que acredites quando digo, hoje e agora: Amigo meu.Se leres esta carta reflete sobre tudo o que nela digo. Reflete bem. Deve haver um caminho para eu saber que leste esta carta. Deve havê-lo. Fica com Deus! Fiquemos com Ele!