CARTA A ALGUÉM QUE SE FEZ PASSAR POR UM PERSONAGEM FICTÍCIO

Quando eu te conheci, você sempre me falava de você. Através das tuas histórias, a cada dia eu te conhecia um pouco mais porque somos o produto das pequenas histórias que compõem a nossa trajetória de vida. Somos no presente o que o passado fez de nós. Na tua companhia eu me realizava, encontrava a minha completude, e me apaixonava...

Um dia, porém, fatídico dia, eu descobri que você mentia: que mentiu o tempo todo. Descobri que você não era você: era um personagem fictício. Sua vida era um teatro, relicário de representações mil; suas histórias nada mais eram que criações suas. E eu, inocentemente, havia me deixado iludir.

Recebi o impacto no peito (e no estômago). Quedei-me. Demorei a me levantar. Julguei que não iria sobreviver àquela tempestade. Mas sobrevivi... Aliás, não apenas sobrevivi, mas superei o estrago que você me fez!

A sua trajetória de vida que você me apresentou era uma novela, livro verbal apócrifo, criados especialmente para me impressionar. Você se escondeu, e muito bem, atrás dos seus relatos, simulacros de exemplos de retidão e superação.

Eu saí desse drama conhecendo bem o personagem que você criou, mas sem te conhecer. Durante algum tempo vivi um misto de curiosidade e vontade de saber quem de fato era você, mas, confesso que senti medo de descortinar a figura que foi camuflada: se até você temeu se deixar conhecer, certamente eu não iria me sentir bem diante do que apareceria!

Hoje eu prefiro lembrar de tudo como uma aula (que apesar da dor provocada, trouxe ensinamentos); um alerta para se tomar cuidado para que as velhas ilusões, ao serem desmascaradas, cedam lugar a novos sonhos sem deixar marcas: tal qual o lixo orgânico (muitas vezes invisível) que sai no banho que nos renova diariamente.