' Sangrando...'

Sabe, as recordações ainda latejam em minha memória como se toda história ainda fosse recente...

Lembro-me de quando éramos crianças e falávamos somente de coisas bobas -mas que para nós possuía intenso significado-, as risadas que ambos arrancávamos, nossas brincadeiras inocentes, as piadas sem graça e tudo ao qual dizíamos que permaneceria mesmo que o tempo ousasse atrapalhar.

Eu O admirava tanto por ser como era, por ver e entender meus defeitos e mesmo assim estar sempre comigo. Eu achava incrível como conseguia ler a minha pessoa tão facilmente... percebendo quando eu "queria dizer algo e não conseguia" ou quando eu "omitia algo" para não discordar de ti. Sempre achei que estava no controle, mas com o tempo notei que o que sempre sabia de tudo e lia todas as coisas era VOCÊ. Eu sempre dizia que não merecia tamanha atenção e compreensão, nunca entendi como que você conseguia entender meu jeito "estranho e desajeitado de ser", acho que talvez por conseguir me ler tão bem você omitia tudo...

Sempre fui oculta para muitos casos e ocasiões, nunca fui muito altruísta, confesso que até me rebaixava à certos assuntos, que Você bem sabia quais eram.

Às vezes O via longe, mas não ousava perguntar o que se passava... Estranho não? Eu, sua amiga desde a 3ª série do ensino fundamental com receio de perguntar algo... Tinha uma certa raiva deste meu lado, porém eu só pensava que, caso quisesse desabafar com alguém, o faria mais cedo ou mais tarde... e não foi isso que aconteceu...

Ainda recordando das situações, aos 15 anos vieste me apresentar sua primeira namorada, e que linda ela! Foi exatamente o que eu disse. Notei um instante de silêncio de sua parte, mas não permaneceu por muito tempo, logo você voltou ao seu estado de sempre: Alegre e despreocupado. Outra característica que O admirava...

Eu sempre contava minhas mais tristes e felizes situações cotidianas, contava meus sentimentos mais banais, até os que eu não conhecia, meus medos, receios, inseguranças...talvez seja por isso que sempre omitira tantas coisas...

Eras tão presente até àquele dia... Já no 2º ano do ensino Médio não foste ao planetário com a classe, aliás faltara também no dia anterior e me dissera que havia pego um leve resfriado. Mas faltar ao planetário? Você adorava Astrologia! esperei o término da aula e fui diretamente à sua casa.

Logo que cheguei, não vi Bidu nosso cachorrinho, o que era estranho! Sua mãe com a mesma expressão de sempre me negou uma visita à sua pessoa e eu não entendia o porquê...dei-lhe a amostra que peguei no planetário, esta sendo a Lua, satélite que ambos admirávamos e fui embora.

Como não aparecera no dia seguinte também, voltei à sua casa logo cedo e avistei o carro de sua mãe com uma certa "pressa". Como não pensei em algo mais lógico, ateada pelo impulso a segui até onde consegui, porém perdi o carro de vista. Chegando em casa pedi à minha mãe que me acompanhasse até a sua para saber o que acontecia. Esperamos mais ou menos 40 minutos até a chegada do seu pai que com muita insistência nossa, revelou sua situação. Eu não acreditei! Estavas no hospital nestes exatos três dias e não me contara... estava esperando um transplante de coração há anos e não me contara... teria que ficar no hospital porque havia piorado e não me contara... nunca soube de nada! Um instante de desespero perpassou ao meu coração, gelei.

Rapidamente fui ao hospital, não queria ficar longe de ti por mais nem um minuto... queria saber de tudo, estar presente a cada detalhe...

Logo que foi permitida minha entrada à seu quarto, vi Bidu deitado no tapete e Você num sono profundo...Ficaste assim por umas duas horas e quando acordaste abriste um largo sorriso à mim e logo em seguida lágrimas escorriam por sua face. Sentei-me à cabeceira da cama e juntos ficamos, em silêncio... parados somente com sua cabeça em meu colo.

Todos os dias após a escola ia fazer-lhe companhia, Você não gostou muito da ideia, tinha um certo medo, mas eu não decifrava qual seria. Talvez você já soubesse o que estava por vir...

Lembra-se? Este dia eu havia levado os livros que líamos quando crianças. Desfrutamos do bom humor e logo caímos no sono.

Senti um leve roçar em meus lábios e um sentimento puro tocou o meu coração, algo que jamais havia imaginado. Ouvi um sussurro "Você era meu limite, minha rosa, a ilusão que mais amava"... COF COF, COF COF. Ligeiramente acordei e o vi estendido à minha frente, agonizando. Desesperada corri em busca de um médico, minhas forças esvaiam-se a medida que tudo passava em minha mente, lágrimas rolavam na minha face sem cessar. Ali mesmo no corredor vi o alvoroço, o possível e o impossível. Ali naquele corredor, foste e levaste contigo minhas lágrimas.

Desde então esse vazio me corrói a alma... esta ferida que não se cala... "Se eu não tivesse adormecido!", "Se houvesse acordado antes"...talvez...talvez...Me perdoa por ter falhado no último momento...Me perdoa por não tê-lo compreendido...Me perdoa por não conseguir pensar de mim àquilo que disseste um dia que deveria... Com esta cicatriz que mais uma vez sangra à minha falha, à tua perda...ME PERDOA!

Lilium Nygra
Enviado por Lilium Nygra em 16/05/2015
Reeditado em 18/09/2023
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