3ª CARTA

“Desculpe se não compareço às reuniões. Faz tempo que não me sento com vocês para aquele bate-papo regado a uma boa cerveja...
Não sei, mas não consigo ver graça em mais nada. Sinto que há um peso sobre os ombros que me impede de sair. Virei uma reclusa. Acho que perdi a coragem de ir à rua (a expressão correta é esta mesma: coragem!). A minha casa é o meu refúgio. Sinto-me segura aqui. Não sei bem explicar a razão de tudo isto, e por mais que eu tente descobrir a causa sempre termino com a mesma pergunta: “por quê?” Não sei. Talvez a causa esteja na minha aposentadoria, eu não devia ter dado entrada no maldito requerimento. Agora é tarde. Mas também não sei se é por causa disso. Você entende? É um peso que não me deixa.
Ainda anteontem, depois de muito relutar, fui com uma amiga ao Centro Espírita na Pereira Trovão. Lá, o Pai-de-santo me falou de um “encosto”. Que era uma alma, talvez da família, ainda perambulando em nosso mundo. Eu acho que é isso mesmo. Mas o que sei mesmo é que tudo está muito pesado e já nem me levanto mais da poltrona em frente à TV. É televisão o dia inteiro, à noite remédios pra dormir. Desculpe o desabafo. Deixem a minha cadeira em um cantinho. Quando essa doença passar eu volto.
Beijo,
Antônia”.



Você não está doente, Antônia. Quem não vê graça na vida é uma pessoa séria e imperturbável. Eu a parabenizo por isso e até a invejo. Melhor assim do que imaginar que o mundo não passa de um picadeiro. E uma prova de sua invejável transformação está sobre os seus ombros: é o peso da responsabilidade! São poucos os escolhidos para função tão magnânima. Sem dúvida, é de pessoas como você que o mundo precisa.
Você se diz reclusa. Ora, dentre todas as modalidades de reclusão posso lhe garantir que a mais cômoda é a prisão domiciliar. E para ir-se à rua não é necessário ter coragem, como você confessa não tê-la. Trata-se de uma simples questão de opção. E se você optou por ficar, então fique. Deixe as ruas aos vagabundos e aos sem teto. E não esqueça de agradecer a Deus por suas telhas, seu sofá e sua televisão.
Não tente, em hipótese alguma, descobrir a causa das coisas. Mesmo os mais renomados cientistas ainda não descobriram a origem da vida. Que dirá do peso de seus ombros? Aceite-o como um Karma, ou então reveja a lei newtoniana segundo a qual “a toda ação corresponde uma reação”. Quem sabe trata-se de uma dívida? Você diz ter consultado o pai-de-santo e que ele lhe dissera haver uma alma a rondá-la em nosso mundo. Está vendo? Quem sabe? Proponho que volte ao Pai-de-santo para esclarecer melhor essa dívida. Já imaginou uma inclusão no Serasa do céu? Aí, para limpar, só mesmo o Juiz dos juízes!

Abraço,
Dr. Golden.