Carta para uma amiga

Carta para uma amiga




Prezada amiga,



Vou começar essa carta aludindo a certa bandeira de Taiwan, verde com uma flor vermelha. Saiba, porém, inexiste uma auriflama de Taiwan, há a bandeira da república da China ali disposta, que é vermelha e azul. A verde é a bandeira original do Movimento de Independência de Taiwan. Essa tem o nome de "Crisântemo de Oito Pétalas". Isso me lembrou aquele seu poema "Deserdados", por livre associação, penso eu. Já o lábaro em questão entrou numa competição e foi escolhido entre mais de 186 outros modelos, em 1994. Bem, tremula em Taiwan a bandeira da república da China e caso Taiwan resolva hastear a que leva o nome de "Crisântemo de Oito Pétalas" terá imediatamente, por parte da China, uma declaração de guerra, além de 496 mísseis apontados para o seu território, que aliás teve o status de terceiro melhor padrão de vida asiático. Assim, eles vivem sob a sombra ameaçadora de uma ditadura implacável e seus mastros não tem poesia. Vosso poema "Deserdados", entretanto, fala de pétalas caídas e de perfumar o chão com a própria alma. Fala muito mais, fala altíssimo para qualquer criança de 55 anos como eu sobre os que pisam sobre a vida, sem perceber o delicado da trama.

Hoje descobri ao acaso um cara chamado Gene, que nasceu em Ohio em 1928, dono de uma obra que na essência denota saudáveis intersecções com os "Deserdados" e com o "Crisântemo de Oito Pétalas". Palavras dele: "Dessas preocupações e experiências cresceu uma esperança determinada de que a prevenção da tirania pode ser possível, que lutas bem sucedidas contra as ditaduras poderiam ser travadas sem massacres mútuos em massa, que as ditaduras poderiam ser destruídas e novas ditaduras impedidas de ressurgir das cinzas".

Ora, parte desta carta de agora nasceu da confluência de raciocínios mesclados a insights, além de angústia moderada, senão tristeza, perante a barbárie ocorrida na Cidade Luz.

Cada dia é um dia. Ontem, a título de desabafo de estalo, de última hora, coisa de minuto bem (?) aproveitado, fiz uma macaquice de título "Bill Clinton para presidente", acho preferível do que bater panelas, detesto barulho e afinal escritores bem podem se prestar a uivos desconexos livres de gongorismos maiores, menores ou medianos. Foi só um chute na porta ou mais um risco no cabo da faca da indignação.

Hoje Gengis Kahn bateu na porta da velha Lutécia. Qual....Deixei uma fração da minha consciência ser fisgada pela soma da contagem dos corpos. Então me desliguei, como fazia o Kevin Costner naquele filme
"Por amor", ele arremessava a bola de beisebol no meio de estádio apinhado e barulhento, e para que o arremesso fosse eficaz Kevin se desligava de tudo e cumpria sua função. Minha função nesse giro das horas noturnas consistiu em sair do eixo gravitacional da tragédia parisiense e formular esta missiva.

O novo "amigo" Gene também escreve: "Tentei pensar cuidadosamente sobre as formas mais eficazes em que as ditaduras podem ser desintegradas com sucesso com o menor custo possível em sofrimento e vidas. Nisso, ao longo de muitos anos, eu baseei meus estudos de ditaduras, movimentos de resistência, revoluções, pensamento político, sistemas governamentais e, sobretudo, luta não violenta realista".

O que acontece é que o sr. Kahn não reúne qualquer capacidade vibracional no seu conjunto mente-espírito para compreender seja o simbolismo da bandeira digamos oculta de Taiwan, seja qualquer um de seus excelsos poemas, seja a nítida argumentação do pensador Gene, de Ohio.

Para o sr. Kahn e afiliados o próximo se resume numa pasta de sangue. O que me intriga nesse nosso planeta presente é a possibilidade consumada de unir na mesma dimensão seres do século XI e do século XXI. Pelo visto disfunciona, não apresentando a menor possibilidade de intercâmbio. Ademais, é daninho ao extremo, cria deserdados além da conta e rasga todas as bandeiras.

Amiga, vou me despedindo, não sem antes agradecer de coração seu incentivo para com as bobagens que burilo, eu não diria para sobreviver, mas para viver, escritores só entram no mundo dessa forma, poetas idem, tu o sabes, rogo que a esperança jamais nos abandone e palavras de força nos cerquem a todo instante, afinal, trata-se do nosso combustível de deslocação nas telas do tempo que passa por nós.

Patrick Henry, um dos protagonistas da Revolução Americana teria dito: "Give me liberty, or give me death". Os que dão a morte, presumimos, não são livres. E os que estão em patamares oitavas e oitavas acima do que se supõe que seja a liberdade, verbalizam do seguinte modo:

"Liberte os oprimidos, acabe com todo o jugo, vista os despidos e sua luz irá brotar como o amanhecer e o amparo do Senhor será a sua retaguarda". (Isaías).

Grande abraço, amiga, Paz e Bem sempre.

Bernard


(Imagem: "Colcha de Mãos", Sarah Mary Taylor,  1916 - 2000)
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 14/11/2015
Reeditado em 04/06/2020
Código do texto: T5448174
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