A história da Ética (Carta 185)

A HISTÓRIA DA ÉTICA

Antônio Mesquita Galvão

Caro Professor Mesquita Galvão,

Sou Mestrando em Filosofia em Florianópolis, e fui informado

que você é especialista em Ética. Por essa razão, para

subsidiar minha tese, solicito alguns dados sobre “História da

Ética”.

Por se tratar da especialidade deste autor, vamos desenvolver neste trabalho um roteiro capaz de fornecer ao leitor elementos filosóficos e teológicos capazes de orientar o debate, municiar a denúncia e fomentar movimentos capazes de deter o clima de devastação que a monocultura, o falso reflorestamento, representado pela plantação de árvores que nada têm a ver com nosso solo, e pela instalação de fábricas de celulose oriundas da Europa, onde é proibido, por nocivo ao meio-ambiente, o plantio daquelas árvores, e a fixação das fábricas.

Para estabelecer essa instância de esclarecimento, vamos discorrer aqui, por vários capítulos, de forma didática e vigorosa a respeito da ética formal e dos aspectos morais que norteiam a nossa cultura ocidental. Primeiro vamos centrar nossa análise na ética, na moral e na teologia, para só então estabelecermos um aporte ao assunto central.

Para conhecê-lo e ter capacidade de debate, o leitor precisa passar pelos caminhos da ética. A história da ética tem nos revelado, séculos afora, que a finalidade dos códigos morais é reger a conduta dos membros de uma sociedade, de acordo com princípios de conveniência geral, para garantir a integridade do grupo e o bem-estar dos indivíduos que o constituem. Assim, o conceito de pessoa moral se aplica apenas ao sujeito enquanto parte de uma coletividade.

Nesse particular, a ética se tornou uma disciplina crítico- normativa que estuda as normas do comportamento humano, mediante as quais o homem tende a realizar na prática atos identificados moralmente com o bem. A análise do desenvolvimento da atitude moral da humanidade ao longo do tempo revela um processo de progressiva interiorização: existe uma clara evolução, que vai da aprovação ou reprovação de ações externas e suas consequências até o julgamento das intenções que servem de base para essas ações. A ética, nessas condições, é submetida ao julgamento da consciência.

O que alguns estudiosos designaram como “ética da intenção”, que já se encontrava no Código de Sinuê, do antigo Egito, há 5000 anos, como, por exemplo, "não zombarás dos cegos nem dos anões", e do Antigo Testamento (1.250 a.C.), que proíbe que se desejem os bens do próximo. Secularmente, todas as culturas têm elaborado uma porção de mitos, religiosos ou não, para justificar suas condutas morais. Nos mitos o homem de todos os tempos se refugia, para organizar sua vida e, ao mesmo tempo, dissipar seus medos.

No Ocidente, onde se forjou a cultura judaico-cristã, conhecemos a figura de Moisés, que recebeu no monte Sinai, as tábuas com os dez mandamentos divinos. Conhecemos igualmente o mito narrado por Platão († 347 a.C.), no diálogo Protágoras († 411 a.C.), segundo o qual Zeus, para compensar as deficiências dos humanos, conferiu-lhes o senso ético e capacidade de compreender e aplicar o direito e a justiça.

Com a instauração do sentido ético veio também o chamado senso-crítico. O líder religioso, padre, rabino, pastor, mulá ou outro, ao atribuir à moral origem divina, torna-se seu intérprete e guardião. O vínculo entre moralidade e religião consolidou-se de tal forma que muitos acreditam que não pode haver moral sem religião. Segundo esse ponto de vista, a ética se confunde com a teologia moral.

Na História da Ética, observa-se que coube a um sofista da antiguidade grega, Protágoras, romper o vínculo entre moralidade e religião. A ele se atribui a frase “O homem é a medida de todas as coisas, enquanto são e enquanto ainda não são”. Para Protágoras, os fundamentos de um sistema ético dispensam os deuses e qualquer força metafísica, estranha ao mundo percebido pelos sentidos. Teria sido outro sofista, Trasímaco de Calcedônia († 400 a.C.), o primeiro a atribuir o egoísmo como base do comportamento ético.

Sócrates († 399 a.C.), que alguns consideram fundador da ética, defendeu uma moralidade autônoma, independente da religião e exclusivamente fundada na razão, ou no (logos). Ele atribuiu ao Estado um papel fundamental na manutenção dos valores morais, a ponto de subordinar a ele até mesmo a autoridade do pai e da mãe. Para ele a justiça não é algo convencional. É fundada na natureza das coisas, de onde se tira a verdade absoluta. Trasímaco critica Sócrates por usar o método da refutação. Para ele, Justiça não é outra coisa senão a conveniência do mais forte. Talvez por causa disto que alguns “filósofos modernos” afirmem que ética é um acordo entre canalhas.

De outro lado, o filósofo Platão, apoiado na teoria das ideias da transcendentalidade e do devir, deu continuidade às teorias éticas socráticas, de onde a (areté, a verdadeira virtude) provém do verdadeiro saber. Este é o saber que dimana do mundo das ideias. Pela razão (o logos), faculdade superior e característica do homem, a alma se elevaria mediante conhecimento, ς(gnóssis) ao mundo das ideias. Seu fim último é purificar ou libertar-se da matéria para contemplar o que realmente é e, acima de tudo, a idéia do Bem. A ética, aqui, inflete na direção do Bem, tornando-se uma determinante da felicidade do homem.

Para Aristóteles († 322 a.C.), considerado “o pai da lógica”, a causa final de todas as ações humanas era , eudaimonia (a felicidade). Assim, só será feliz o homem cujas ações sejam sempre pautadas pela virtude, que pode ser adquirida pela educação. Trasímaco é um personagem do diálogo platônico “A República”, sendo o principal interlocutor de Sócrates no primeiro livro desta obra.

Na filosofia clássica, o logos é a razão divina que atua como princípio ordenador do Universo. Heráclito foi o primeiro a utilizar o termo logos com dimensão metafísica. Para o estoicismo, o logos é concebido como um poder racional de origem divina que ordena e dirige o Universo.

Quando na Antiguidade grega Aristóteles apresentou o problema teórico de definir o conceito de Bem, seu trabalho era de apenas investigar o conteúdo do que é bom, e não definir o que cada indivíduo deveria fazer numa ação concreta, para que seu ato fosse considerado bom ou mau. Evidentemente, esta investigação teórica sempre deixou consequências práticas por todos os tempos, pois quando definimos o Bem, estamos indicando um caminho por onde os homens poderão se conduzir nas suas diversas situações particulares. A filosofia teve a coragem de definir aquela divisória, às vezes tênue entre o bem e o mal.

A ética também estuda a responsabilidade do ato moral, ou seja, definir se a decisão de agir numa situação concreta é um problema prático-moral. Cabe-lhe também investigar se a pessoa pôde escolher entre duas ou mais alternativas de ação e agir de acordo com sua decisão. Este é um problema teórico-ético, pois verifica a liberdade ou o determinismo ao qual nossos atos estão sujeitos. A liberdade nem sempre é um dom; pode converter-se em um compromisso. Ou uma “condenação” como afirmou J. P. Sartre († 1980).

Antes disso, o utilitarista Jeremy Bentham († 1832), no que foi seguido pelo economista John Stuart Mill († 1873), defendeu o princípio do eudemonismo clássico para a coletividade inteira. De outro lado, Friedrich Nietzsche († 1900) criou uma ética dos valores que inverteu o pensamento ético tradicional. O francês Henri Bergson († 1941) estabeleceu a distinção entre moral fechada e moral aberta, onde a primeira era conservadora nitidamente, baseada no hábito e na repetição, enquanto que a outra se fundava na emoção, no instinto e no entusiasmo próprios dos profetas, santos e inovadores.

É com Immanuel Kant († 1804) que a coisa muda de figura. Até fins do século XVIII, todos os filósofos, talvez exceto Platão, aceitavam que o objetivo da ética era ditar leis de conduta. Kant enxergou o problema sob novo ângulo e afirmou que a realidade do conhecimento prático (comportamento moral) está na idéia, na regra para a experiência, no "dever ser". Para ele, todas as proposições comuns que resultam da experiência de mundo são sintéticas, isto é, não se pode chegar a elas tão-somente pela análise.

Para os filósofos originários, o ideal ético é um imperativo categórico, ou seja, ordenação para um fim absoluto sem condição alguma. A moralidade reside na máxima da ação e seu fundamento é a autonomia da vontade. Desde a época em que Galileu afirmou que a Terra não é o centro do universo, desafiando os postulados ético-religiosos da cristandade medieval, são comuns os conflitos éticos gerados pelo progresso da ciência, especialmente nas sociedades industrializadas do século XX. A sociologia, a medicina, a engenharia genética, a biologia e outras ciências se deparam a cada passo com problemas éticos. Em outro campo da atividade humana, a prática política antiética tem sido responsável por comoções e crises sem precedentes em países de todas as latitudes.

Em termos de ética e moral há uma variedade de opiniões. Uma outra visão nos é apresentada pelo pensamento de Nietzsche, já mencionado linhas atrás. Ele é um crítico veemente e mordaz a toda moral existente, seja ela a moral socrática (que ele rejeita) ou a judaico-cristã (que ele ridiculariza). A todas, ele chama de “moral da burguesia”. Para este filósofo alemão, a vida é vontade de poder, princípio último de todos os valores; o bem é tudo que favorece a força vital do homem, é tudo o que intensifica e exalta no homem o sentimento de poder, a vontade de poder e o próprio poder. O mal é tudo que vem da fraqueza. Nietzsche anunciou o übermensch, o “super-homem”, alguém capaz de quebrar a tábua dos valores usuais, transformando-os a todos em padrões da moralidade desejada.

Uma das correntes modernas dignas de nota para nosso estudo é o pragmatismo, que se dedica às questões práticas vistas sob uma ótica utilitária, onde procura identificar a verdade com o útil, como aquilo que melhor ajuda a viver e conviver. O Bom é algo que conduz a obtenção eficaz de uma finalidade, fim esse que nos conduz a um êxito. Encontram-se vestígios desta corrente na sociedade capitalista moderna

As premissas do pragmatismo se tornaram o reflexo do progresso científico e tecnológico alcançado pelos Estados Unidos no apogeu de sua fase capitalista onde o "espírito de empresa", o "american way of life", criaram solo fértil para a mercantilização das várias atividades humanas. Da idéia de bem como sendo o que traz vantagens para muitos, criou-se um raciocínio funcionalista, onde só tem valor aquilo que é capaz de dar satisfação. Essa tendência aparece em muitas formulações éticas, principalmente no pragmatismo que, como doutrina ética, parece estar muito ligada ao pensamento anglo-saxão, tendo se desenvolvido muito nos países de fala inglesa, particularmente nos Estados Unidos, no final do século XX. Seus principais expoentes são os filósofos William James († 1910) e John Dewey († 1952).

Existe um grande perigo embutido no pragmatismo, que é a redução do comportamento moral a atos que conduzam apenas ao êxito pessoal transformando-o numa variante utilitarista marcada apenas pelo egoísmo, rejeitando a existência de valores ou normas objetivas. Nesse aspecto aparece o egoísmo voltado aos interesses de grupos, do tipo “não me importa que cor tenha o gato, desde que cace ratos”. É a busca da vantagem particular, onde o bom é o que ajuda meu progresso e o meu sucesso particular. Esta tendência norteia a maioria das atitudes do empresariado moderno. Dentre todas as preocupações que motivaram a reflexão desde os primórdios da cultura ocidental, é bem possível que a ética tenha sido a primeira. Por tudo o que se conhece da civilização grega em seus períodos mais arcaicos, sabe-se que as elaborações místicas, as religiões, a poesia, a tragédia, a organização da vida política e outras manifestações do pensamento ocupavam-se intensamente com o significado ético da vida humana.

Quando nos voltamos para as primeiras tentativas de ordenação do pensamento em função da explicação do cosmo e do lugar que o homem nele ocupa, notamos imediatamente a mescla dos objetivos de compreensão cósmica, como ordem física, com a preocupação em atingir os princípios de bom comportamento social, como ordem ética que fundamentam e governam a organização do universo. Tanto é assim que não se pode separar com exatidão a fé e a razão, o conhecimento e a cultura, a moral e a ética. Academicamente, vemos a ética como uma característica inerente a toda ação humana e, por esta razão, torna-se um elemento vital na produção da realidade social.

Todo homem possui um senso ético, uma espécie de “consciência moral”, estando constantemente avaliando e julgando suas ações para saber se são boas ou más, certas ou erradas, justas ou injustas. A esse tipo de consciência os moralistas (os pós-graduados, especialistas em Teologia Moral) dão o nome de “reta razão”.

É inegável afirmar que existem sempre comportamentos humanos classificáveis sob a ótica do certo e errado, do bem e do mal. Embora relacionadas com o agir individual, essas classificações sempre têm relação com as matrizes culturais e psicossociais que prevalecem em determinadas sociedades e contextos históricos. Há sempre uma possibilidade de se avaliar uma conduta entre boa e má. A ética está relacionada à opção, ao desejo de realizar a vida, mantendo com os outros, relações justas e aceitáveis. Via-de-regra está fundamentada nas ideias de , agathón (bem) e  aretê (virtude), enquanto valores perseguidos por todo ser humano e cujo alcance se traduz numa existência plena e feliz.

O estudo da ética, pelo menos no lado do Ocidente, talvez tenha se iniciado com os filósofos gregos há 25 séculos. Nos nossos dias, seu campo de atuação perpassa os limites da filosofia, a ponto de tornar-se uma abordagem multidisciplinar, uma vez que inúmeros outros pesquisadores do conhecimento dedicam-se ao seu estudo. Teólogos, sociólogos, psicólogos, antropólogos, biólogos e muitos profissionais de outras áreas desenvolvem trabalhos no campo da ética.

Você poderá obter mais dados sobre ética no Google e em meus livros “A crise da ética” (ed. Vozes, 2000) e “Ética cristã e compromisso político” (Ed. Ave-Maria 2002).

O autor é Escritor, Filósofo e Moralista.