O Inquisidor e a Liberdade (Carta 187)

O INQUISIDOR E A LIBERDADE

Uma amiga e ex-aluna de Londrina, PR, pede

esclarecimentos sobre a figura do “Grande Inquisidor”

que aparece em uma obra de Dostoiévski.

Prezada amiga,

O Grande Inquisidor é um texto interpolado pelo personagem Ivan Karamázov e desenvolvido em forma de prosa no diálogo com seu irmão Aliócha dentro do romance “Os Irmãos Karamazovi”, do escritor russo Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski († 1880). Trata-se de um monólogo, ambientado na cidade de Sevilha a época da grande inquisição, no qual um Cardeal da Igreja se depara com Jesus Cristo encarnado e ordena sua prisão, questionando e condenando sua volta à Terra. A figura do Grande Inquisidor é uma parte importante do romance e uma das mais conhecidas passagens da literatura moderna, devido as suas ideias acerca da natureza humana, da liberdade e do poder político-religioso.

A capacidade crítico-literária de Dostoievski, um cristão ortodoxo, ressalta, neste romance, uma série de personagens de primeira grandeza que debatem, em termos da vivência humana, o problema do bem e do mal, da liberdade de salvar-se ou condenar-se, do livre arbítrio e conseqüentemente da responsabilidade humana. No homem “dostoievskiano”, a alma é puro caos. O amor e o ódio, a volúpia e a fraqueza confundem-se em “transposições” ininterruptas. O autor decompõe a volúpia e remonta às suas raízes, às suas composições mais misteriosas, insistindo na antinomia entre o “mundo” e o “eu”, o aniquilamento do homem em favor de forças invisíveis. É o profundo sentido do “absurdo da vida”, que tem suas raízes em Dostoievski, ramificando-se em Albert Camus com A Peste, num sentido imanentista, e assumindo “traços transcendentais” em Franz Kafka († 1924).

No enredo do episódio do “Grande Inquisidor”, Dostoievski descreve que Cristo desce à terra na época da inquisição espanhola e começa a curar. O Inquisidor justifica sua missão terrena mostrando a Cristo que ele dando liberdade ao homem (“a verdade os tornará livres”) deu-lhe um fardo pesado para suas costas fracas e o Grande Inquisidor “tirando-lhe a liberdade em troca da segurança” revelou-se seu amigo, ao mesmo tempo em que transferia toda responsabilidade dos atos humanos na terra para si, deixando para o homem o pão terrestre. Em nome do homem e do cristianismo o Inquisidor mostra que poderia atirar Cristo à fogueira. Por esta razão o Inquisidor dirige a Cristo uma pergunta – que resume o tópico do livro – que é deveras desconcertante:

Por que voltaste para prejudicar nossa obra? Há 2000

anos que nós delimitamos a vida dos homens, com dogmas e regulamentos, e eles se submeteram alegremente a nós... pois isto os salvará de tomarem suas próprias decisões.

No episódio da cura do endemoniado de Gerasa, o diabo faz semelhante pergunta a Jesus:

Por que vieste nos atormentar antes do tempo? (Mt 8, 29b).

Revelando a necessidade de uma “liberdade para o bem”, Jesus sugere a opção pela “porta estreita” da virtude (cf. Lc 13,24). Esta é a ética do Ressuscitado, que ensina como agir (bem) e como evitar (o mal). Jesus mostra o caminho (a prática) ao invés de admoestar (teoria). Essa troca de mal por bem, de teoria por prática tem feito a diferença na exposição do que é a ética do cristianismo. Abrir mão da liberdade, seja em troca do que for, tem sido causa dos maiores desastres da história humana. Este tema, por sinal, foi desenvolvido no discurso do Inquisidor. Na ficção do grande escritor russo, Cristo volta à terra e ao invés de uma recepção gloriosa por parte dos cristãos, é mal recebido, pelo Inquisidor, que é líder de uma Igreja que aprisiona o Filho de Deus, acusando-o de subverter a doutrina dos “notáveis”, e assim destruir o trabalho que era feito em nome do Messias.

A Igreja diz que o Inquisidor estava ali para “corrigir” o trabalho de Cristo, adaptando-o às necessidades da humanidade, que ansiava por liberdade. Nesta obra, que trata de forma cristalina e contundente a dicotomia do ser humano, livre e fraco, o autor ampliou os diálogos entre Aliocha (um místico, ingênuo, cheio de sonhos) e Ivan (um racionalista). Os finais de Dostoievski (“Os Irmãos Karamazovi”) e de Kazantzakis (“O Cristo Recrucificado”) têm semelhanças. O padre assassina (dentro da igreja) o artista que representava Cristo, porque não admite sua interferência em favor dos miseráveis do lugar. O mal, travestido de bem, vence. A figura do Inquisidor – conclui Dostoievski – existe em qualquer lugar onde os homens substituam a liberdade pela submissão. É mais fácil o povo ser submisso que tentar conquistar a liberdade. Esta é uma realidade histórica, embutida na vida de muitas nações. È salutar informar que Karamazovi é o plural de Karamázov.

Rejeitando o princípio divino, a liberdade incriada na fé livre do Cristo, o ser humano é incapaz de suportar as provas de sua liberdade espiritual. E acaba por escolher o caminho da arbitrariedade, fora da liberdade cristã, da discriminação entre o bem e o mal. Sem o esforço do sofrimento, torna-se impossível a liberdade, que o coloca em um dilema: de um lado a liberdade, de outro lado a felicidade e a organização racional da vida. Liberdade com sofrimento, ou felicidade sem a liberdade.

A lenda do Grande Inquisidor reconstitui o que nas escrituras encontramos como tentação no deserto. Jesus foi levado ao deserto para ser tentado pelo maligno, repele-o, e o diabo o deixa, afinal. As tentações são afastadas por Cristo, que não deseja um espírito humano cativado pelo pão grátis, pelo milagre fácil e por um ilusório reino terrestre. O Inquisidor, ao contrário, acolhe as tentações em nome da felicidade e do apaziguamento dos seres humanos, renunciando, assim, à liberdade.

Como Dostoievski deixa claro, o elemento destrutivo da atitude do Inquisidor é que ele retira a liberdade do homem. A ética cristã, ao contrário, apesar de exigente, não retira a liberdade, mas reforça a necessidade de ele assumir o peso de suas escolhas. Por conta disto, encontramos um texto do Antigo Testamento que se situa no terreno do alerto quando ao uso da liberdade:

Desde o princípio Deus criou o homem e o entregou ao poder

de suas próprias decisões (Eclo 15,14).

Os filósofos oriundos ou influenciados pelo racionalismo alemão e da chamada “esquerda hegeliana” (Engels, Marx e Feuerbach) também vêem a liberdade – a exemplo de J. P. Sartre – como uma “armadilha”, enfatizando que, para ser completa, a liberdade humana deveria ocorrer não apenas no terreno da utopia, mas especialmente do crer, do agir e também do duvidar.

Sartre († 1980) chega a afirmar que o homem é “condenado à liberdade”. Às vezes os esquemas humanos, sociais, políticos, econômicos ou religiosos se tornam opressores na medida que tentam impor suas vontades (e não-raro ideologias), impedindo que o ser humano seja feliz, convivendo com o resultado de suas escolhas.

O mal assume, muitas vezes, a figura falsamente ética do Inquisidor e do padre de Kazantzakis, mencionados, impedindo que a liberdade se transforme em bem, um dos mais expectados valores da vida humana. A sensibilidade ante a liberdade e o mal não ocorre de forma uniforme, em épocas ou civilizações. Os antigos gregos, v.g., davam muita atenção ao mal cruel, à fatalidade (isto é atestado no conteúdo das “tragédias”).

No renascimento (séc. XVII), com Pascal († 1662) e Racine († 1699), só para citar dois, o mal trágico parece ter despertado mais sensibilidade a esse tipo de desgraça. Em Sartre torna-se latente a idéia existencialista sobre a liberdade, como fator de ansiedade e opressão.

A humanidade está cheia daquele egoísmo provocado pelos que não temem a Deus, mas também pelos que, temendo, deixam-se levar no torvelinho das paixões, muitas vezes supervenientes à ética e à moral. Ser livre torna o homem vulnerável. Sendo livre, ele nem sempre usa essa liberdade para o bem. O próprio Paulo, predestinado à santidade, temia as armadilhas da liberdade que buscavam seduzi-lo, perguntando: Quem me libertará deste corpo de morte? (Rm 7,24).

Nós, muitas vezes confrangidos por nossa miséria, aquela que em geral não queremos, também perguntamos: quem nos livrará desses impulsos de morte? Com a perda da “inocência” surgem os primeiros rudimentos da sensibilidade ética. O mito adâmico indica – a par dos castigos – que a pessoa herda determinados encargos de autoconsciência, ansiedade e sentimento de culpa.

A psicanálise, em fins do século XX, chegou à conclusão – a partir de Françoise Dolto († 1988) – de que o ser humano tem extremas dificuldades para lidar com a sua liberdade, chegando por isto, em muitos casos ser considerado como alguém “relativamente livre”, tamanho os condicionamentos que o sufocam. É da conceituada psicanalista francesa a afirmação abaixo:

Hoje em dia, as pessoas têm tanto medo de usar sua

liberdade, de se arriscar que terminam por não correr o risco

de serem felizes... (In: A causa dos adolescentes, Ideias &

Letras Ed, Santuário, 2004).

Na pós-modernidade, vimos nossa Igreja bloqueando certas posições libertárias dos católicos. Para muitas “autoridades” eclesiais não interessa a evolução do pensamento geral no sentido de uma prática de “liberdade”, pois ser livre é pensar com a própria cabeça, e isto não agrada algumas “autoridades”. A teologia da libertação foi pressionada até o desespero. É pena, pois o evangelho, baseado no espírito de Deus implica sempre num compromisso com a libertação do homem de tudo que oprime, corrompe e escraviza. Jesus veio para libertar a todos (cf. Lc 4,18).

Um abraço e volte sempre.

O autor é Escritor, Filósofo e Moralista (Pós-graduado em Teologia Moral).