A espiritualidade dos cristãos - Carta 198

Carta n. 198

A ESPIRITUALIDADE DOS CRISTÃOS

Itinerário para seguir Jesus

Prof. Dr. Antônio Mesquita Galvão

Carta em resposta à solicitação de uma irmã de Recife (PE)

sobre a espiritualidade dos leigos e sua inserção da Igreja,.

Vocês que são ‘espirituais’ devem corrigir, com paciência

e modéstia, algum irmão surpreendido em delito... (Gl 6,1).

Por mais incrível que possa parecer, e como veremos no desenrolar desta meditação, muitos cristãos desconhecem o verdadeiro sentido da palavra espiritualidade. E é justamente por causa desse equívoco que não conseguem desenvolver adequadamente um cristianismo de acordo com seu estado de vida. Muitos a confundem com “espiritismo”, outros atribuem alguma relação exclusiva com o Espírito Santo, e alguns apontam para algum tipo de vida espiritual, sem saber conceituar nem tampouco avaliar como se desenvolve esse tipo de vivência.

Por ser a espiritualidade uma forma muito rica de relação com Deus, estabelecemos aqui alguns itens prioritários, para elaborar um modesto “roteiro”, sem que se queira esgotar o assunto, nem tão pouco dogmatizar a espiritualidade cristã apenas sob os tópicos aqui relacionados. O leitor poderá observar que, o que se pretende aqui é sugerir um breve “itinerário”, nada mais que isto, uma vez que a espiritualidade cristã, suscitada pelo Espírito de Deus é supervenientemente rica, incapaz de caber em um breve elenco de virtudes e atitudes, como as que aqui serão enunciadas. A estrutura do trabalho gira em torno de algumas ideias ou eixos, que atuam como realidades axiais para a nossa vida cristã. A espiritualidade cristã, como se verá ad nauseam, é um estilo de vida. De vida cristã.

O ser humano por ser uma justaposição de matéria e espírito, corpo e alma, soma e psiquê, é suscetível às influências dessas duas instâncias, que nem sempre se harmonizam. Por esta razão, as duas naturezas, corporal e espiritual digladiam-se dentro de nós, levando nosso ser às vezes para a vida material, e em outras, para a busca de uma vivência exagerada das coisas do espírito. Por esta razão, não é fácil para o ser humano estabelecer essa difícil convivência, das tendências da matéria com os apelos do espírito. As condições de vida, os meios de comunicação, o convívio com pessoas e grupos sociais, conseguem, em muitos casos, levar-nos a cultuar mais as coisas materiais, em detrimento da vida espiritual. O oposto também ocorre.

O grande desafio da espiritualidade cristã é compatibilizar uma vida voltada para os apelos do Espírito na ambiguidade da vida material a que todos estão sujeitos. Não é possível a ninguém, alienar-se de sua vida material, social, profissional, familiar, política, etc. É justamente nessas circunstâncias de nossa existência que devemos nos encontrar com Deus, sem fugir do mundo, mas relacionando-nos com o Infinito conforme nosso estado de vida. Reside aí o desafio: viver uma vida cristã, espiritualizada e voltada para o alto, sem furtar-se à vida material e à dimensão sócio-fraterna, inerente a esse tipo de vida.

É fundamental que se insista na necessidade que os cristãos têm, cada vez mais, de descobrirem eles próprios os caminhos de sua espiritualidade, de acordo com o estado de vida abraçado por cada um, sem que um queira viver em sua vida o tipo de espiritualidade do outro, conforme veremos no decorrer desta reflexão. Tudo deve ter início, a partir da iluminação da fé, pela Palavra de Deus, numa formação bíblica e doutrinária adequada, assim como a descoberta de uma nítida consciência crítica, não jungidas a outros modelos de vida cristã, mas adequados à vida concreta de cada pessoa, conforme sua missão no meio do mundo. Sendo a espiritualidade a forma como nos relacionamos com Deus, é importante que deixemos de lado certo tipo de cristianismo desvinculado com a vida e o mundo, demasiadamente angelista, sem o compromisso com as transformações que o evangelho de Jesus não cansa de nos exortar.

Toda a religião vivida de modo alienado, se torna alienante, para quem a pratica e para tantos quantos interajam com pessoas que assim atuam. Além disto, a vivência de uma espiritualidade incoerente é capaz de, pelo negativo do testemunho, desviar muitas pessoas do caminho reto, da amizade com Deus, da Igreja e do serviço aos irmãos.

Para auxiliar o leitor a trilhar pelos caminhos da espiritualidade, organizamos este trabalho, baseado num retiro que assessoramos em 2005, como uma incursão fundamentada a partir do mistério do Deus Trinitário, o ápice da fé cristã, girando sobre a graça, a fé e o mistério da Igreja-comunidade, tudo alavancado pelo estudo da Palavra, pela oração e pelas obras de misericórdia (a ação cristã), instâncias capazes de levar à conversão à perspectiva do Reino. Nessa caminhada, deparamo-nos com Maria, mãe de Jesus, mestra da espiritualidade, ela que nos ensina como transformar a vida num sim contínuo ao projeto do Pai. Juntando todos esses fatores, o livro vai desembocar nas realidades célicas, porto de chegada de nossas expectativas de felicidade e salvação eternas.

Como área de estudo e reflexão, a espiritualidade vem emergindo mais claramente como atividade interdisciplinar, mas, ao mesmo tempo, uma reflexão que assume uma relação especial com a teologia, pois em ambas, a fé assume a característica de fio-condutor. A cada dia aumenta o debate sobre o assunto, enquanto avolumam-se teorias, ideias e trabalhos sobre o tema. A espiritualidade, como veremos no decorrer deste trabalho, preocupa-se com a dimensão abrangente da pessoa humana. Não apenas espírito, mas também com suas realidades temporais. É a inspiração do espírito que nos torna solidários e voltados às necessidades dos outros.

A estrutura deste trabalho, como já foi sinalizado, gira em torno de dois eixos: a metodologia do estudo da espiritualidade, metodologia esta que privilegia a “teologia da graça” e a vivência, a prática da espiritualidade como relação com Deus. Por oportuno, vale ressaltar nesta introdução, que o papa Bento XVI, um especialista, na Missa do Galo de 24 de dezembro de 2005, pediu mais espiritualidade ao povo cristão, como remédio contra o materialismo e egoísmo que minam as relações com Deus e com o próximo. É preciso, recomendou o Pontífice, espiritualizar-se para aspirar aos dons maiores.

A vida do ser humano é uma só, e como tal, deve ser cristã. Nesse particular, a espiritualidade, como foi preconizada por Jesus, pelos santos e místicos de todos os tempos, deve abranger, de forma integral, a vida do homem e da mulher. Nessa vivência, discernida e consciente, crescente, comunicante e testemunhal, está nosso modo próprio de viver a fé, e assim exprimir nossa adesão integral a Cristo.

A palavra espiritualidade é compreendida como a ação do Espírito Santo no cristão; age nele e age através dele. Esse mistério da ação do Paráclito no ser humano, o leva a orientar toda a sua vida para Deus, de acordo com os critérios que Deus lhe dá, por Cristo, através dos evangelhos. O Espírito que age no cristão leva-o a uma ação em favor do mundo, do próximo, da Igreja como núcleo de comunidade e dele próprio, já que elabora o itinerário de sua salvação. Surge a partir daí a essência da vida espiritual, capaz de estabelecer a diferença (nem sempre bem apreendida por todos) entre a dinâmica e a estática. Se espiritualismo tem ligações com doutrinas espíritas e esotéricas, a espiritualidade refere-se àquela inspiração que é concedida ao cristão pelo Espírito de Deus.

O ato de orientar “toda a sua vida” refere-se ao homem todo, completo, devidamente estruturado, espiritualizado e inserido nas realidades do mundo em que ele vive. Espiritualidade, desta forma, é um estilo de vida, um modo de viver. Exprime a forma como nos relacionamos com Deus. E não só com Deus, mas com toda a sua Criação.

Para este estudo vamos seguir um método, especulativo, intuitivo e orante. Por método entenda-se  (metá) +  (hodós), ou seja, segundo um caminho, aqui subentendido o caminho que o Espírito vai nos suscitar. Aprofundando mais esse modo de viver, veremos que ele exprime a adesão da pessoa humana a Cristo. Para a transformação do mundo, segundo o projeto de Deus, é preciso que o homem viva de forma consciente, objetiva, profunda e discernida sua espiritualidade.

Ao dizermos toda a sua vida, não estamos nos referindo apenas ao lado espiritual da vida humana, mas ao homem completo, inserto no mundo e nas realidades em que vive. Começa a delinear-se, a partir dessa adesão, um verdadeiro estilo de vida, na mentalidade e no comportamento do cristão. Espiritualidade, além de definir nosso relacionamento com Deus, é o modo de viver cristãmente nossa vida e assim impregnar o mundo com o suave odor de Cristo (cf. 2Cor 2,15).

A espiritualidade no puro sentido da palavra surge como a qualidade do que é espiritual, ou seja, é a forma de viver-se, na prática e no cotidiano, a nossa fé. Nesse aspecto, constata-se que a espiritualidade autêntica consiste em estarmos atentos às exigências do evangelho, pois ele é o roteiro capaz de nortear adequadamente nossa espiritualidade.

Buscando ampliar ainda mais o raciocínio, podemos dizer que espiritualidade é tudo o que tem por objeto a vida espiritual e o nosso contato com Deus, como elevação, transcendência e sublimidade, sem descaracterizar a existência corpórea, onde o lado espiritual favorece as virtudes que devem infletir sobre o material. Somos seres humanos de carne e osso e, mesmo voltados para o transcendente, não é possível esquecer essa constituição. O esforço de espiritualizamo-nos para chegar mais perto de Deus, ocorre de diversos jeitos, inclusive pela fraternidade. Há diversos modos de se amar a Deus, mas todos eles passam pela solidariedade e amor ao próximo. A grande constatação é que só tem o direito de chamar a Deus de Pai aqueles que têm a coragem de chamar o outro de irmão.

Espiritualidade, deste modo, é permitir que o Espírito atue em mim, para que eu possa atuar em nome dele. É permitir que o Espírito me transforme para que eu possa participar da transformação da Igreja e do mundo. A espiritualidade autêntica jamais me levaria a isolar-me do mundo, a escapar da vida e a alienar-me de mim mesmo. A verdadeira espiritualidade é a que produz engajamento, movimento e ação proativa. Os grandes mestres da espiritualidade de todos os tempos, como o apóstolo Paulo, Francisco de Assis, Tereza de Ávila e Mahatma Gandhi foram pessoas altamente comprometidas com as causas humanísticas do seu tempo e não adoradores contemplativos e alienados de um Deus sem substância e sem presença no mundo real. Como disse Jesus aos seus discípulos:

Vocês são a luz do mundo... Não se acende uma lâmpada para colocá-la sob a mesa, mas no ponto mais alto da sala, para que ilumine a todos os que estão em casa. Assim brilhe a luz de vocês diante dos homens, para que vejam suas boas obras e glorifiquem o vosso Pai, que está nos céus (Mt 5,14a.15-16).

No dualismo soma/psique (corpo/alma) do ser humano, o espírito atua de forma a favorecer e otimizar a vida do corpo humano. Nesse terreno, corpo e alma não se excluem, mas se apoiam e se interpenetram, pois o homem, assim como não é só corpo, igualmente não é só espírito, mas uma formidável realidade psicossomática. Tantos assim que viveremos a eternidade em corpo e alma. Céu e terra, carne e espírito, vida material e mundo espiritual, não se opõem, mas, pelo contrário, se apoiam e se complementam, como limites da grande criação de Deus.

São Paulo, escrevendo aos cristãos da Igreja nascente dizia “... vocês que são ‘espirituais’ devem corrigir, com paciência e modéstia, algum irmão surpreendido em delito...” (Gl 6,1). Isto equivale a dizer que o apóstolo recomenda àqueles que vivem uma verdadeira espiritualidade, que exercitem a chamada “correção fraterna” como um ato de amor, no sentido de despertar em todos uma forma concreta de relação com Deus. Os espirituais são os que se deixam penetrar pelo Espírito Santo. Nos textos do apóstolo dos gentios observa-se uma recomendação no sentido do desenvolvimento de uma espiritualidade encarnada com a vida, onde a fé em Deus é capaz de despertar a solidariedade com o irmão.

Quem quiser se inserir no amoroso projeto de Deus, e assim viver sua fé de forma coerente e produtiva (as bases para a espiritualidade verdadeira), precisa fugir daquele cristianismo estereotipado, alienado, burocrático, “de fachada”, que não leva a nada, exceto ao descrédito da mensagem de Jesus e ao risco de perda da salvação para quem age desta forma.

A espiritualidade se torna, assim, a fonte de uma vida plena. Por subentender um encontro com Deus, ela ajuda a viver melhor a vida. Algumas pessoas imaginam possuir uma fé completa, autêntica, mas vivem tristes, acabrunhadas, debilitadas por dentro, questionando a falta de alguma coisa para que sua relação com Deus seja eficaz. Às vezes essa relação peca por ser muito intelectual, quem sabe gerada apenas após um mero conjunto de idéias e doutrinas, como atividade de quem deseja apenas “saber mais”... Isto não basta para uma vida em plenitude. Em outras oportunidades, essa espiritualidade incipiente fundamenta-se em normas morais, onde o que importa é cumprir aquilo que imaginam ser a vontade de Deus.

Para uma contextualização da espiritualidade cristã, o fundamental é colocar-se irrevogavelmente “na presença de Deus”. Fora disto é alienação pura! Entrar na presença de Deus é torná-lo a essência, adotando-o como a força mais importante da nossa vida. Assim alcançamos a alegria maior, obtendo uma satisfação diferente e superior a qualquer outro prazer da vida. Para que o encontro com Deus seja fonte de vitalidade e de alegria, ele precisa influenciar toda a existência concreta: os afetos, a imaginação, o desejo e o próprio corpo precisam entrar na presença divina. O que aprendeu a desenvolver adequadamente sua espiritualidade é aquele que quer sempre estar perto de Deus... sob seu olhar paterno:

Para onde ir, Senhor, longe do teu sopro? Para onde fugir longe da tua presença? Se subo aos céus, tu lá estás; se me deito no abismo, aí te encontro. Se tomo as asas da alvorada para habitar nos limites do mar, mesmo lá é tua mão que me conduz, e tua mão direita me sustenta (Sl 139, 7-10).

A espiritualidade desperta naquele que crê um imenso desejo de Deus. As experiências mais profundas começam com o desejo... Com o despertar do desejo... “como a corça anseia...” a porta do coração se abre pelo lado de dentro. Tudo tem início a partir de nossa escolha em relação ao projeto de Deus para nossa vida. Essa decisão acontece no plano profundo da opção fundamental, que é aquela escolha radical do horizonte de vida, capaz de dar sentido à procura dos maiores bens/dons espirituais. É preciso desejá-los... Espiritualidade é acalentar um desejo do Eterno...

É muito bonita a decomposição etimológica da palavra desejo. Na etimologia latina, o verbete desejo (desiderium) aponta para um estar longe das estrelas e aspirá-las... tal qual faz o romântico ao contemplar a noite e o céu estrelado (de sideribus). Desejo, nessa conformidade poético-teológica, é aspirar a presença do Ausente. Há um texto lapidar de Santo Agostinho onde ele aponta para essa idéia: “Fizeste-nos inquietos e nosso coração está inquieto enquanto não repousa em ti”.

Deste modo, motivada pelo desejo (de Infinito) que cada um tem no mais íntimo do seu ser, a opção fundamental (opção totalizante por Cristo) vai se realizando no concreto da vida cristã (que subentende uma espiritualidade adulta, consciente e definida). Para entrar na presença de Deus é preciso desejar ardentemente estar em comunhão com ele, sentir necessidade dele, de sua luz, de seu amor, de sua glória, de sua paz. Nessa proposta não resolvem as simples palavras. É preciso um conjunto de atitudes de comunhão.

Ao chamar seu Pai de Abbá (Paizinho), Jesus profere um integral ato de obediência e concordância ao projeto divino. O “sim” de Jesus nasce, portanto, do amor sem reservas, e sua liberdade é a do amor de quem, para encontrar a própria vida, não tem medo de perdê-la (cf. Mc 8,35). Trata-se daquela capacidade espiritual, a mesma que animou a vida e a caminhada dos santos, de arriscar tudo por Deus e pelos outros, audácia de quem vive o êxodo de si, sem exigir nenhum retorno do amor.

Encontramos traços desse modelo nas bem-aventuranças (cf. Mt 5,1-12). Neste sentido, as bem-aventuranças nada mais são do que a autobiografia de Jesus... “bem-aventurados os pobres... bem-aventurados vocês que agora têm fome... bem-aventurados vocês que agora choram...” (Lc 6,20s). A pobreza e o despojamento de Jesus, fruto de sua radical e livre escolha dos desígnios do Pai, o transformam em homem de alegria, de paz, de oração e, sobretudo de ação em favor da humanidade. Pobre em relação ao passado, ele se abre ao futuro; pobre com relação ao presente, com fantasia e coragem, sente-se capaz de transformá-lo; pobre diante do pesaroso e obscuro futuro, que se lhe apresenta, Jesus vence a tentação do medo e se abandona completamente nas mãos do Pai. Os manuais de espiritualidade, bem como as pregações dos santos e dos grandes místicos apontam, como inspiração para a espiritualidade autentica, as Bem-aventuranças.

É justamente nos critérios do Sermão da Montanha (cf. Mt 5 – 7) que está desenhado o “espírito do Reino”. É ali que Jesus mostra-se “de corpo inteiro”, e deixa delineado o caminho para seus amigos viverem a verdadeira relação com Deus. Quem quiser pistas para a vivência de sua espiritualidade cristã, busque-as nas bem-aventuranças. Essa espiritualidade deverá ser capaz de dar à Igreja e ao mundo, cristãos com vocação para a santidade. Uma espiritualidade mal conduzida, incoerente, distanciada da verdade e da justiça, é capaz de criar barreiras à instauração do Reino, bem como predispor algumas pessoas contra a vivência cristã, pois as más atitudes, as falsas posturas são capazes de criar rótulos e erguer obstáculos à adesão a Cristo e ao anúncio da Boa notícia.

Se alguém se afasta de Deus, da Verdade e da Justiça, por causa de nossa espiritualidade falsa, superficial ou alegórica, estamos contribuindo, de forma negativa e efetiva para a perdição de alguém. E nossa. Nesse aspecto, é lamentável dizer que nosso mundo, em todos os seus ambientes, está repleto dessas falsas posturas, capazes de fazer tanto mal à expansão da fé e da solidariedade.

Se há coisa condenável é a incoerência, a incompatibilidade entre o que se diz e o que se faz. Na incoerência (especialmente religiosa) é que aparecem as falsas atitudes, distantes da verdadeira relação com Deus. Entre tantas atitudes inconsistentes, poderíamos relacionar:

• rotina, costume - é o cristão social, que só aparece em missa de 7o. dia, casamentos, batizados; ele não age por fé, mas por costume, aprendeu assim, faz isto desde pequeno...

• pieguice - semelhantes aos rotineiros, são os que têm “prática” de tudo: oração para isto, “simpatia” para aquilo; devoção para “achar objetos perdidos”, reza para curar calvície; muita prática e pouca espiritualidade;

• beatice - igual aos que têm prática, os “beatos” têm fórmulas para tudo, atirando a verdadeira espiritualidade no ridículo. Mas cuidado! A verdadeira expressão beato é elevada, canônica e dignifica alguém que amou a Deus em sua vida, como, por exemplo, Madre Teresa, beatificada por conta de suas obras de misericórdia; critica-se aqui a beatice, atitude de quem reza muito e age quase nada, assiste todas as missas pela televisão e é incapaz de colocar-se a serviço; a beatice é uma falsa atitude, e denota uma espiritualidade capenga;

• os cristãos de “fachada” - são talvez os mais perigosos; dizem uma coisa e fazem outra; aparentam santidade e são perversos; trata-se dos legítimos “sepulcros caiados” (brancos na fachada e podridão por dentro); muitos dos “beatos” citados aqui, na acepção negativa da palavra, em geral são “cristãos de fachada”;

• mercantilista - é aquele indivíduo interesseiro, que só negocia com Deus num toma-lá-dá-cá: se eu conseguir tal coisa, acendo três velas; se passar no vestibular mando publicar “uma graça alcançada” no jornal; dizem que o mercantilista também é caloteiro, pois muitos depois de atendidos não pagam suas promessas; exclui-se aqui, é claro, as pessoas que fazem (e pagam) promessas, movidas pelo mais genuíno espírito de fé, religiosidade, confiança e devoção; sempre é bom distinguir uns dos outros;

• superstição - alguns “usam” Deus como um legítimo “quebra-galho”, transformando-o em mero amuleto ou “pára-raios”; há os que mandam “correntes” (mande tantas cópias em três dias...) como se estas fizessem parte do projeto divino;

• intelectualismo - há os que buscam relacionar-se com Deus não pelos caminhos do amor e do coração, mas exclusivamente pelas vias intelectuais; essa falsa espiritualidade, rica em racionalismo e pobre em humanismo, vai aos poucos solapando a fé, a ponto de extingui-la ou imobilizá-la.

Estas atitudes, longe de ser uma manifestação da espiritualidade verdadeira, derivam para o ridículo, num chamado espiritualismo de evasão, onde na impossibilidade de estabelecer uma vivência madura e discernida de sua fé, algumas pessoas assumem uma postura superficial, às vezes fanática, em outras vezes cética, para assim evadir-se do compromisso mais profundo com a conversão e com a devida atitude cristã. As falsas posturas de alguns cristãos atraem o descrédito para a obra da evangelização, para a essência da Igreja e até para a mensagem do Mestre. Tem gente, por aí, padres, pastores e pregadores que confundem espiritualidade com uma mera ”meditação”.

O núcleo da espiritualidade cristã está radicada nos “dez mandamentos”, a partir do primeiro, que nos recomenda amar um Deus amor, pai, amigo, irmão, peregrino, rico em misericórdia. Igualmente o “mandamento novo” (cf. Jo 13,34) que manda amar o próximo (atitude cristã) com o mesmo amor que Deus nos amou (fé) enfeixa todas as dimensões do relacionamento com o Absoluto. Sendo um modo de viver a fé, a espiritualidade exprime uma adesão incondicional a Cristo, adesão esta manifestada nos mais variados modos e critérios de vida, como modo de pensar, de orar, de decidir, frequentar os sacramentos e de tomar atitudes. Percebe-se, deste modo, mais claramente que, havendo vidas e situações diferentes, haverá sempre maneiras e estilos diferentes de cada um viver a sua espiritualidade. Nesse terreno não deve haver uniformidade, pois as circunstâncias são distintas. Embora o elemento comum da nossa espiritualidade cristã seja o ser-Igreja, há formas diversas de vivê-la, de acordo com o estado de vida de cada um.

Existem muitas pessoas que não sabem definir o que seja “estado de vida”, fazendo alguma confusão conceitual, o que acaba dificultando o entendimento. A compreensão desta palavra vai auxiliar sobremodo na compreensão mais profunda da espiritualidade. Cada um vive o espiritual conforme seu estado de vida. Cada pessoa vive de uma forma, conforme sua opção e vocação. Assim, cada uma possui uma forma, um estado, um jeito de levar sua vida. Cabe, portanto, para estabelecermos os pontos-chave da nossa espiritualidade, uma definição desse estado. Tem gente que pertence a um determinado grupo e insiste em viver a espiritualidade do outro.

Entende-se por estado de vida aquela forma que cada um possui, em viver conforme determinam as circunstâncias de sua atividade. O leigo, pai/mãe de família, tem sua forma característica de viver e relacionar-se com Deus. O estado de vida deles é laico, familiar, procriativo, profissional, social e testemunhal. Sua consagração é a Deus (pelo batismo), à família (pelo matrimônio e paternidade) e ao mundo (pela profissão, pelo estudo e pela vida social). Mesmo assim, uma pessoa adulta tem seu estado de vida diferente de uma criança ou de um idoso. A espiritualidade da mulher, que vive no lar, é diferente daquela que trabalha fora. E assim por diante.

Já o estado de vida do presbítero, por exemplo, é sacerdotal, celibatário, missionário, obediente à hierarquia episcopal, ou à sua Congregação, voltado à missão de levar Cristo aos homens e vice-versa. Sua vida é de consagração plena a Deus e entrega aos irmãos. Do mesmo modo, os religiosos, irmãos, freiras, etc. têm formas diferentes de exercitar a espiritualidade, pois cada um deles tem suas características de atuação, que nada mais é que o estado de vida de cada um. Esse estado, como liberdade de escolha do ser humano, reflete a consciência da dignidade humana, superior a todas as coisas. O estado de vida, perfilado ao projeto da vocação de cada um, é fonte inesgotável de alegria e realização.

Sabemos que o nosso ser-Igreja é composto de cristãos ordenados (os bispos, presbíteros e diáconos), leigos (os pais e mães de família, professores, profissionais, jovens, adultos, crianças e idosos) e os consagrados (religiosos, freiras, monges), cada um desses tem, conforme se viu acima, sua forma característica e diferenciada de viver sua espiritualidade, isto é, de relacionar-se com Deus. Cada pessoa, seja ela leiga, ordenada ou consagrada deve viver conforme seu estado de vida, e de acordo com a vocação e carisma específicos. Ë uma distorção, como se enxerga por aí, ver pessoas querendo atuar dentro do estado de vida do outro, o padre querendo viver nas realidades do mundo (política, docências, etc.), ou o leigo querendo ser um “mini-padre”, um “sacristão de luxo”, enfurnado nas sacristias, quando seu campo de atuação é o mundo, a família e os ambientes laicos.

Igualmente o religioso, que se dedica a outras atividades (ativismo político, sindicalismo, exercício de atividades laicas, etc.) que não as suas específicas, foge do que é preconizado por seu estado de vida. Todo aquele que se desvia das características de sua vocação, tem mais dificuldade em desenvolver uma espiritualidade autêntica. São sensíveis os danos à vocação de cada um, causados pela falta de identificação do estado de vida adequado a cada realidade.

Para o leigo, a verdadeira vocação aponta para o mundo: a família, o trabalho, a educação, a política, o lazer, etc. Este é o campo de sua vocação. Em paralelo, e acessoriamente, ele pode atuar, por con-vocação, na Igreja. Para o leigo, a leiga, “ser-Igreja” não é ser um sacristão, nem viver enfiado na igreja/templo ou entrincheirado numa sacristia. É fundamental que todos, consagrados e leigos descubram a forma mais adequada e racional de se relacionarem com Deus, e assim estarão vivendo uma forma consciente e crescente de espiritualidade. Essa forma de viver a fé ajuda na descoberta do sentido da vida. Nesse particular, a fé precisa ser vivida nas dimensões individual, comunitária e social. Dessas dimensões dimana a justiça social.

Para o desenvolvimento de uma espiritualidade discernida, é preciso que cada um descubra sua maneira adequada de viver a relação com Deus e com o mundo. Tentar viver uma espiritualidade fora de seu estado de vida é uma grotesca falta de discernimento. A aludida maldade do mundo pode ser atenuada e até transformada se tivermos cristãos que lutem na trincheira certa, pela justiça, pela partilha e pelo perdão.

A nossa Igreja em geral não costuma valorizar adequadamente o potencial teológico-pastoral dos fiéis leigos. Embora haja uma ponderável plêiade de leigos e leigas bem preparados, salvo algumas exceções (entre as quais eu me incluo), poucos são chamados a exercer atividades que passem além da catequese, ministérios “extraordinários” ou serviços de “sacristão sênior”. Certas paróquias, por exemplo, em suas novenas, preferem pregações de padres, muitas vezes vazias e inconsistentes do que a oratória sacra e o testemunho de determinados leigos.

O que se observa é que, em termos de espiritualidade, aos leigos é atribuída uma capacidade muito superficial, como se espiritualidade só fosse a prática espiritual exclusiva de ordenados e monges. Há tempos, depois de alguns confrontos e incompreensões, um conhecido teólogo brasileiro, o franciscano Leonardo Boff, sentindo-se preterido, pediu dispensa de seu ministério. Logo depois a Igreja anunciou que, em atendimento ao seu pedido, ele havia sido reduzido ao estado laico. Reduzido? A idéia de redução, se não estou enganado, se aplica a algo como um rebaixamento, o que não é o caso. O leigo não está abaixo do presbítero. Cada um tem a sua dignidade. Mesmo porque, como não eram sacerdotes nem integrantes de quaisquer hierarquias, Jesus e seus apóstolos eram leigos.

Eu entendo que nossa Igreja experimentará aquela expressiva renovação, de dentro para fora, preconizada desde João XXIII, quando aprender a aproveitar melhor o potencial profético de seus leigos, homens e mulheres. Para muitos, a espiritualidade dos leigos deve se restringir a três estágios: a) ir à missa; b) pagar o dízimo e ajudar a Igreja em suas necessidades; c) assistir novenas tríduos e procissões. O fato é que o laicato arregimenta o maior percentual de pessoas, e não pode, qual uma massa meio informe, ser ignorado ou subutilizado como costuma acontecer.

O campo de atuação dos leigos, onde devem exercer ativamente a sua espiritualidade, é prioritariamente o mundo: “Mas é no mundo, no vasto e complicado campo das realidades temporais que o leigo encontra seu campo específico de atuação, onde ele tem a responsabilidade de ordenar as realidades temporais para colocá-las a serviço do Reino (P 789-790)”. Há quem, para se refugiar do compromisso, se esconde nas sacristias e nos movimentos eclesiais. Não é aí o lugar onde o projeto de Deus estabeleceu para a instauração de nossa ação cristã. Sem ela não há nenhum tipo de transformação. A distorção maior de múnus ocorre com os padres na política, os religiosos nas finanças e os leigos na sacristia. Aí a coisa fica como o diabo gosta.

Para desenvolver uma espiritualidade autêntica e operosa, do tipo “olhos no céu e pés na terra”, cabe aos cristãos, especialmente os leigos, não fugirem dessas realidades temporais, uma vez que perseverando, presente, ativo e fiel, é ali mesmo que ele vai encontrar o Senhor. Apesar de tão ricas conceituações, observa-se uma significativa dificuldade para o desenvolvimento de uma espiritualidade efetiva e eficaz: a formação religiosa (família, escola, catequese), muitas vezes é deficiente, clericalizada, com excesso de pieguismo, com a consequente ausência de solidariedade e discernimento quanto à missão do leigo, etc. É como diz um velho bispo, hoje emérito, “muito latido e pouca linguiça”. Ou, muita alegoria e pouco proveito.

A espiritualidade dos consagrados, presbíteros e religiosos, já que faz parte da essência de sua vocação, deve ser mais aprofundada e fecunda, uma vez que se instaura a partir de um compromisso, um voto de dedicação absoluta e eterna. Em se tratando de pessoas que a rigor devem trabalhar na evangelização, o mau testemunho provocado por uma forma indevida de espiritualidade, é capaz de provocar mal-entendidos, desvios e até escândalos. Considerando-se a atividade, de alguns, de docentes da fé e da ética, torna-se imprescindível, além da coerência já mencionada, um aprofundamento no sentido da formação e da atualização doutrinária. Para isto, se torna imprescindível – o que nem sempre ocorre – que eles estudem, pesquisem e frequentem cursos, retiros e seminários de reciclagem.

A liberdade, sabemos, é um dom de Deus, que os seres humanos têm o compromisso de instaurar em suas sociedades. “Onde há liberdade, ali está o Espírito de Deus”, ensina-nos São Paulo (cf. 2Cor 3,17). É preciso que todos gozem de liberdade, social, política e religiosa para desenvolverem o modo mais adequado de exercitarem sua espiritualidade.

A Igreja ensina que, resguardando a unidade nas coisas necessárias, todos (leigos, ordenados e consagrados) na Igreja, segundo o múnus dado a cada um, conservem a devida dignidade e liberdade, tanto nas várias instâncias de vida espiritual e de disciplina, quanto nas diversidades dos ritos litúrgicos, e até mesmo na elaboração teológica da verdade revelada. Mas em tudo cultivem a caridade. Agindo assim, manifestarão, sempre mais plenamente, a verdadeira catolicidade e apostolicidade da Igreja (UR 71).

Somos livres para viver e para morrer, para aprender e para ensinar. Assim se manifestaram os sábios da antiga Grécia, ao inculcar em seus discípulos o valor da liberdade. No terreno da fé, que estabelece a âncora essencial de nossa espiritualidade, a liberdade aparece como um valor indispensável à prossecução de nossa amizade com Deus. Somos livres para aderir a Cristo, para atendermos seu chamado, para desenvolvermos nossa vocação, como igualmente sermos fiéis a nosso estado de vida.

No terreno da espiritualidade, o título “teólogo” não aponta somente para alguém que é capaz de prover uma análise especializada e informativa, enquanto fica uma distância pessoal do objeto de reflexão. Ser teólogo (que difere do “ser formado em teologia”) envolve um dever e uma capacidade de presença junto às realidades refletidas. Cabe ao especialista encarar questões desafiadoras a respeito de teoria e prática, fé e mística, contemplação e solidariedade. A necessidade de uma espiritualidade autêntica e encarnada desafia o teólogo que há potencialmente em todos os batizados. Hoje se constata que há pessoas que fazem cursinhos de teologia de fim-de-semana e já querem ostentar o título de teólogo.

A espiritualidade – às vezes definida imperfeitamente – requer de todos uma visão prática, mística e crítica, em mesmas proporções. Assim, definindo, vemos que espiritualidade, mais que ciência é uma atitude. É a forma como nos comportamos, em nossa vida, perante Deus. Vivemos na carne com olhos no Infinito; movimentamo-nos na matéria, com o desejo das realidades sobrenaturais; caminhamos na esperança, expectando a certeza. Nesse particular a fé vê o invisível, espera o impossível e recebe o inacreditável. Espiritualidade é, portanto, uma atitude humana, prática, com consequências espirituais.

De uma forma acadêmica, para melhor compreensão, quem sabe, se poderia dividir a espiritualidade em dois segmentos. No místico há a “comunhão”: eu te louvo, ó Pai...; no prático, o “social”: eu tive fome e me deste de comer... Viver a espiritualidade é, segundo São Bernardo de Claraval († 1153), cada um saber beber em seu próprio poço, ensinamento que ensejaria, no século XX, a confecção de um belíssimo livro, autoria do jesuíta peruano Gustavo Gutiérrez, sobre a liberdade e a espiritualidade latino-americanas.

Nada fora de Deus, é adorável. O homem cai na escravidão quando diviniza ou absolutiza a riqueza, o poder, o Estado, o sexo, o prazer, ou qualquer criatura de Deus, inclusive o próprio ser ou a razão humana. Há, portanto, uma história humana, que embora tenha sua própria consistência e autonomia, é chamada a ser consagrada pelo homem a Deus (cf. P 491).

Nesse terreno, espiritualidade nada mais é que aquela parte da teologia que lida com a perfeição cristã e com os caminhos que levam a ela. A teologia dogmática ensina aquilo em que devemos acreditar. A teologia moral ensina o que devemos ou não fazer para evitar o pecado, mortal e venial. Acima das duas, embora baseada em ambas, vem a espiritualidade, também chamada de teologia espiritual. Esta, novamente, pode ser dividida em teologia prática e teologia mística.

Enquanto mística, a espiritualidade adora; enquanto prática, se coloca a serviço. Nascendo encarnada nas virtudes teologais (fé, esperança e amor), ela vem iluminada pela luz do Deus Trinitário, e adquire, por conta dessa iluminação, uma vigorosa atitude de solidariedade. Espiritualidade é igualmente, um encontro multidimensional, consigo mesmo, com Deus, com o outro e com o cosmo. A espiritualidade cristã tenta responder à pergunta: “Que tipo de Deus nós temos e que diferença isso faz para nós?”. As doutrinas essenciais formuladas pela antiga Igreja Cristã eram as de Deus como Trindade e Jesus Cristo como verdadeiramente Deus e verdadeiramente humano. Todas as afirmações humanas sobre Deus têm implicações práticas: vivemos aquilo que afirmamos. Espiritualidades ineficazes ou até destrutivas inevitavelmente refletem teologias inadequadas de Deus.

Espiritualidade é vida cristã, mudança, conversão que conduz à perfeição da alma e das atitudes humanas. O caminho da perfeição – ensina Santa Teresa de Jesus – passa pela cruz. Falaremos em cruz, num outro dia. Não existe santidade sem renúncia e sem combate espiritual (cf. 2Tm 4,6ss). Não se admite espiritualidade sem cruz. É a partir da espiritualidade que se vive e se exprime a fé, e é das duas que brota a atitude cristã, a ação transformadora, característica da práxis da comunidade. Há uma inegável inter-relação entre espiritualidade e ética. Este é um dos fundamentos da disciplina chamada Teologia Moral. Nesse contexto, fé e prática (espiritualidade e ética) buscam encontrar uma linguagem comum em uma antropologia teológica e um entendimento da graça renovado. Espiritualidade e ética, nesse aspecto, não são totalmente sinônimos. A espiritualidade inspira a ética, mas não deve ser reduzida a ela. Sobre isto, Jesus dá a pista (cf. Jo 14,23): “Se alguém me ama (fé), cumpre minha Palavra (atitude), meu Pai o amará (a graça) nós viremos a ele, meu Pai e eu (presença trinitária) e nele faremos nossa morada (salvação)”.

O ponto alto da espiritualidade é quando se observa os cristãos, cada um na sua faixa de atividade, descobrindo sua vocação e nela perseverando. Ao leigo, por exemplo, pelo fato de estar mais ligado ao mundo, à família, à profissão, à política e demais segmentos correlatos, ali perseverar. Mais profecia e menos diaconia. É preciso viver a espiritualidade própria de cada estado, jamais tentando usurpar, ou permitir que lhe imponham o papel de outrem. A conversão, que brota da espiritualidade conscientemente direcionada precisa ser testemunhada e comunicante. Jesus nos alerta que “...ninguém acende uma lâmpada para colocá-la debaixo da cama” (Mt 5,15). Por esta razão, por questões de testemunho e de emulação cristã, a conversão precisa ser comunitária. Que os outros, vendo a minha conversão (autêntica) também queiram se converter.

A verdade é que ninguém se converte isoladamente. No sul diz-se que os cristãos se salvam em pencas: uns ajudam e carregam os outros para o céu. A conversão do cristão o leva a completar a sua caminhada na comunidade e com a comunidade. Sintetizando, se poderia afirmar que a espiritualidade é o terreno da liberdade dos filhos de Deus, tornando-se parte do processo anímico que organiza a vida do povo (cf. Rm 8,21) que se ergue e caminha na direção da casa do Pai (cf. Lc 15,18). O fato é que a procura de Deus é o sentido definitivo de toda a espiritualidade. O grande desafio que se coloca diante da busca de uma espiritualidade autêntica é mostrar como sua visão de Deus pode contribuir decisivamente para que o desejo encontre comunhão com os outros, e expresse compaixão pelo próximo, e dessa com-paixão surja a obra de transformação do homem e do mundo. A esperança nas promessas de Jesus ajuda os crentes a descobrirem nesse advento da parusia, em que vivemos, não um já, mas um quase. E a esperança, como diz São Paulo, é a âncora da nossa vida (cf. Hb 6,19).

A espiritualidade, no dizer de Gustavo Gutiérrez, é uma aventura comunitária. Trata-se do passo de um povo que trilha seu próprio caminho em seguimento ao Ressuscitado, através da solidão e das ameaças do deserto. É uma experiência espiritual, qual um poço de água pura. O seguimento de Jesus, objetivo básico da verdadeira espiritualidade, define a práxis do cristão. Nesse particular, a espiritualidade (viver na presença de Deus, amando-o em Cristo e no Espírito) deve ser a profunda e constante preocupação do apóstolo moderno. Tal preocupação aponta para a leitura, de modo particular, de alguns temas fundamentais do evangelho, que nos interpelam e nos levam a avaliar se nosso acervo espiritual está ajudando a nos tornarmos mais justos e mais fraternos. Não basta fazer “ação de graças”, mas urge colocar a graça em ação, em favor do Reino e do irmão. A vivência do compromisso libertador ajuda a delinear em nós os traços da espiritualidade original. Para seguir a Jesus é indispensável uma espiritualidade sincera, profunda, encarnada e perseverante.

Um cristão se reconhece, antes de qualquer coisa, pelo modo como ele se organiza para o futuro, e também como ele se preocupa com o bem-estar de seus irmãos (cf. Jo 13,35). Ele sabe que só merecem o nome de valores cristãos os que contribuem para a solidariedade e para a união das pessoas. É uma violação à espiritualidade e à solidariedade cristã todo aquele pensamento ou atitude que se prestem a justificar a tirania, a imposição de hierarquias opressoras, ou separações e discriminações totalmente incompatíveis com o mandamento do amor.

Um cristianismo desvinculado, sem compromisso com a vida e com o mundo, alienado e alienante, só pode gerar uma espiritualidade distorcida. Fugindo do medo e da alienação, o cristão torna-se aquela pessoa capaz de assumir, enfrentar e realizar a tarefa que pelo batismo lhe foi confiada. A espiritualidade abrange a vida integral do ser humano. Nossa vida é uma só, ensinavam os mestres medievais da Espanha, e toda ela deve ser cristã.

Falamos aqui a respeito dos conceitos equivocados a respeito de Deus e as falsas atitudes que nos impedem de desenvolver uma espiritualidade autêntica. É preciso fazer a experiência de Deus − amor, pai, irmão, rico em misericórdia, amigo, peregrino, que caminha conosco − em nossa vida. Nesse conjunto, a espiritualidade, como resposta daquele que crê em Deus, amando-o, é a ação do Espírito Santo em nós (e através de nós). Trata-se da forma como somos cristãos e como conduzimos nosso relacionamento com Deus e com os outros. Espiritualidade não se refere apenas ao lado espiritual do ser humano, mas abrange todo o homem, completo, dentro do mundo, das realidades e ambientes onde vive e atua. É um estilo de vida, de viver os fatos do cotidiano, viver na terra com os olhos no céu. Nessa opção, céu e terra não se opõem, mas – pelo contrário – se completam. A incessante busca de um progresso espiritual conduz a uma espiritualidade cada vez mais eficaz. Nesse particular, a eficácia corresponde à aproximação, cada vez maior, daquilo que Deus projetou para a minha vida.

O progresso espiritual tende à união sempre mais íntima com Cristo. Essa união recebe o nome de mística, pois é por meio dela que participamos do mistério da encarnação/morte/ressurreição de Cristo. Unidos a Jesus somos chamados à conversão e à salvação pelo dom gratuito e generoso da graça. Dessa união decorrem várias consequências que são capitais para a compreensão do desígnio de Deus para a nossa salvação. Com efeito, o Pai só pode amar seu Filho, único objeto de seu amor. Porém, quando o Verbo se faz carne, e o Filho eterno de Deus se faz homem, ele atrai para a humanidade todo o amor do Pai (cf. Jo 3,16). A encarnação fez com que o homem entrasse em comunhão com o Filho, para receber a adoção que o tornaria filho de Deus. O ponto culminante da obra de Deus na terra está no mistério da Redenção. Deus vem a nós pela graça (e a encarnação perfila-se aí, privilegiadamente) e o homem responde a ela pela fé (a forma eficaz de viver sua espiritualidade).

No mistério da Redenção desembocam todos os outros mistérios de Deus. A redenção, vista a partir da morte de Cristo na cruz, prolonga a Encarnação, completando-a. A Ressurreição e a Ascensão formam um todo com a morte, que se torna o marco decisivo para a realização de tudo aquilo que Deus projetou. A inserção do homem nesse projeto ocorre pelo desenvolvimento da espiritualidade. O objetivo da espiritualidade é reformar o coração e a vida daquele que crê, coloca sua fé em prática e se dispõe a seguir a Jesus. É preciso reformar, com amor e decisão tudo quanto pode nos afastar do projeto do Pai, da luz do Espírito e da graça de Jesus. Foi ele que prometeu: “Eu sou a luz do mundo! Quem me segue não andará nas trevas, mas possuirá a luz da vida” (Jo 8,12).

Ao finalizar, é salutar a gente lembrar que espiritualidade é amar a um Cristo vivo, que interpela profundamente nosso coração. Trata-se – conforme já vimos – de uma atitude! É a forma como nos comportamos, em nossa vida, perante Deus. Vivemos na carne com olhos no Infinito; movimentamo-nos na matéria, com o desejo das realidades sobrenaturais; caminhamos na esperança, expectando a certeza. Espiritualidade é, portanto, uma atitude humana, prática, com consequências espirituais. Nessa firme convicção, Jesus deve ser para nós o Senhor que salva e liberta, a ponto de dizermos, como Paulo:

Não sou eu que vivo, mas é o Cristo que vive em mim (Gl 2,20).

Um abraço fraterno.