Carta para uma amiga (3)

Carta para uma amiga (3)



Olá amiga, como vai, tudo bem? Antes de mais nada quem agradece sou eu, a oportunidade única de desfrutar desta amizade preciosa somada a convivência artística de longa data cujo fruto se traduz em saudável e não menos afetivo aprendizado. Nos tempos que correm isso é uma dádiva sem tamanho.

Você menciona uma notícia vista na grande mídia que lhe causou náuseas. Nem vou me dar ao luxo de perguntar qual notícia, mas antes vou te contar um segredo: sinto o mesmo. E o que é pior, isso tem se agravado. Daí fiquei matutando 5 minutos e conclui que se alguém, amanhã, filmar e divulgar um vídeo, com áudio e tudo, sem cortes, mostrando um bando de senhores integrantes de afamada classe profissional, em determinado local do nosso país, literalmente jantando criancinhas - com garfos e facas, (e colheres), criancinhas destrinchadas com ketchup, mostarda, molho inglês, maionese, os senhores babando e se refestelando, gargalhando, embriagados quiçá, um autêntico banquete dos infernos documentado de A a Z, sabe o que vai acontecer?

Nada.

Militantes de toda sorte vão surgir, com cartazes, porretes e discussões tipo:

a. É mentira
b. Fulano comeu muito mais criancinhas do que Sicrano
c. As criancinhas merecem isso mesmo pois são bastardas
d. O vídeo é falso
e. Pelas filmagens pode-se ver que é uma questão racista
e homofóbica, jamais canibalismo, e em virtude do que dizia Marx, blá,blá, blá.


Por fim, amiga, e pelo fato de termos inaugurado um novo teto perceptivo-argumentativo cá na nossa terra, se algum laranja for condenado ele vai dizer: ora, me colocar na cadeia não vai trazer as crianças de volta.

E assim se resume a nossa situação. Semana retrasada deu na TV o vídeo de uma mulher dizendo: meu pai vai me matar, ele é poderoso e vai se safar. Dito e feito. Matou ela na frente dos netos e bye, bye, sumiu. Ninguém toca mais no assunto e nem vai tocar.

Por aqui chove, depois de um baita calor. Os cara e as mina tão há um mês pulando carnaval. O prefeito eleito desgosta de grafites e disse que a população terá que pagar a poda das árvores. Como se Sampa fosse uma cidadezinha de 3 mil habitantes, sem problemas de vulto e quase não pagássemos impostos.

Estou lembrando agora de um amigo virtual que chegou na minha página ano passado e, no box do comentário teceu uma tese brilhante e incontestável sob a égide: Ninguém Presta. (Falava ele sobre determinada classe profissional). Ah, e o maluco deprê, o tal metalúrgico do século apregoa que vai voltar e nos transformar numa Venezuela. Uai, que aspiração mais esdrúxula. Que idéia fixa, meu Deus, por que não nos transformar na cidade dos Jetsons, ou na Disney?

Amiga, recentemente tomei contato com uma história verídica das mais interessantes, totalmente desconhecida. Berlin, 1940, um casal de berlinenses da gema, que até batiam continência, de repente sentem a morte do filho, no front, e ambos começam a espalhar pela capital cartões postais com dizeres: cuidado, você também vai perder seu filho, a impressa está censurada, o homem do bigodinho vai nos matar a todos, etc. O nome dele era Otto, o dela esqueci. Pois bem, de 1940 até 1943 eles colocaram na cidade 285 cartões com mensagens contra o governo. Foram pegos pela polícia e decapitados, não sem antes saberem que 270 cartões foram entregues pela própria população às autoridades. Percebe? Apenas 15 textos chegaram, talvez, ao seu destino. Esse episódio é extremamente emblemático porque revela de forma incontestável o grau de hipnose da população.

Ao que me parece, exatamente onde estamos.

Deixo um afetuoso abraço, e os votos de um bom domingo.

Bernard



(Imagem: "Colcha de Mãos", Sarah Mary Taylor,  1916 - 2000)
 
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 04/03/2017
Reeditado em 04/06/2020
Código do texto: T5930713
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