Carta para Dona Dete

Entre o cheiro de temperos verdes, sons de feijões sendo selecionados na mesa de madeira, ventos, vozes e mais vozes de uma casa cheia, escutei sua história, cheia de tristeza e o descobrimento do amor. Em um dos milhares de são João´s. mas desta vez como em um cinema mudo, com várias pessoas ao redor da fogueira, assando milho, vendo bombas estourarem, vendo bocas abrirem e fecharem, e um som ecoou, mais alto do que o som de qualquer fogos bradei: DEIXE DE OUSADIA MINHA VÓ. E assim descobri(mos) que eu estava novamente escutando.

Com as portas abertas, passos de um lado e do outro, cheiro de bolo, manga, cocada, doce de leite, tapioca, nome de todos os filhos e netos sendo ditos em apenas 3 segundos, apartando confusão da molecada, todo mundo era neto, todo mundo era filho, qual o tamanho deste bolo que nunca acabava? Qual tamanho desta jarra de suco, que apesar de ter derramado pela cozinha, ainda tinha para quem chegasse com sede? Como sabia o que cada um gostava? Eu particularmente nunca disse nada. E esse batom, essa roupa, pra ver novela, pra desfilar pela casa? Pra nos ver correndo pela rua? No seu quarto gigante que pouco ousei entrar, enquanto te abanava por ter passado mal e assim faltou luz, ou faltou luz e você passou mal. Vi vários dos seus batons, colares, perfumes, roupas, te abanava e me assustava por te ver tão de perto, e descobrir que você também descansava. Como cabia em ti todas as irmãs do meu avô, primos, sobrinhos, filhos, vizinhos, amigos, netos, os cachorros, o bolero, o Roberto Carlos, o Valdick, como pode caber tantos seres em 1 só? Como através de você, eles também cabem em mim? Como uma criança daquela idade, não entendia que uma senhora daquela idade, podia brincar tanto, fazer tanta palhaçada, entrar de maiô na piscina de plástico, porque ela não era mais séria, mais adulta? A criança-adulta morria de medo de ficar no escuro e solicitava a companhia da velha-criança ao terceiro quarto, até o momento que o sono a abraçasse. Chegava com minhas malas de férias e ela ria, porque eu levava mais revistas em quadrinhos do que roupa. E a cada entardecer, próximo ao horário da novela, ensinava a ela a usar o controle remoto da tv. E com um ar supremo, ensinei-a a fazer lasanha e quando ela decidiu fazer sozinha, fui surpreendida por aquele sabor e a pedir para me ensinar a fazer o que eu havia ensinado. Sai sem entender, até hoje não entendo.

Tão lúcida, tão sentimental, tão forte, tão amistosa, tão silenciosa, tão alegre, tão cheia de números, tão cheia de idades imensas, como tomou tanta conta do nosso ser?

Adriane Neves
Enviado por Adriane Neves em 12/03/2018
Código do texto: T6277361
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