Rio de Janeiro, 23 de três

Olá, passado, como vai?

Já começo essa carta pensando na grande ironia que ela é. Talvez você se recorde como eu detestava treinar carta para a redação do vestibular. E agora estou aqui, escrevendo uma, depois de tantos anos.

Não sei bem o que me trouxe a escrever isso. Talvez eu queira te dizer que hoje eu comprei um toca discos e isso me lembrou quando ouvíamos Chico na sua casa. Por alguma razão, não comprei nenhum disco dele. Estou escutando Ray Charles (acho que foi você quem me apresentou, inclusive)

Talvez eu queira te dizer que me formei e sou concursada. Ou, então, que adotei um gato. Ou que visitei São Paulo algumas dezenas de vezes, e sempre lembro dos nossos planos de estudar lá. Você lembra disso?

Ah, Coloquei dois piercings. Nada ousado, claro (sabes bem que a ousadia sempre foi um atributo que não tive).

Nesse momento, Ray Charles canta uma música dos Beatles: Eleanor Rigby (acho que é isso). Lembra quando dizíamos que Beatles era superestimado e não víamos nada demais nessa banda? Pois é, hoje eu escuto. Tudo começou quando eu assisti aquele musical “across the universe”. Exato, aquele mesmo que eu, um dia, recusei-me a assistir com você.

Mas, não, não é por isso que estou aqui escrevendo isso. Talvez não seja para falar de mim. Talvez seja para falar de você. O que tem feito? Por onde tem andado? Você ainda tem aquela risada escandalosa que tanto te envergonhava, mas que nunca conseguia reprimir, quando te importunava com as minhas bobagens? Você realizou os seus sonhos? Você é feliz?

Depois de te fazer tantas perguntas, refleti que esse também não deve ser o motivo. Isso é uma carta, e seu único objetivo é levar uma mensagem, sem o compromisso de trazer uma resposta. E não terá resposta.

Não vou te enrolar mais com pensamentos aleatórios. Talvez eu só esteja querendo te dizer que mudamos e o quanto as nossas vidas foram drasticamente por uma rota diversa daquela que passamos longos meses planejando. Mas isso você sabe. Você sempre sabe de tudo.

O disco terminou a sua última música. Com isso, acho que é a hora de terminar isso aqui. Só queria fazer o que o orgulho nunca me permitiu: reconhecer o quanto você foi importante na formação do que eu sou hoje. E, acima de tudo, como me arrependo de não ter cultivado a sua amizade e companhia.

Nós éramos ridiculamente iguais. Seja o mesmo tom, quando riámos de piadas que ninguém mais achava graça. Ou o nosso silêncio, enquanto fazíamos programas que qualquer pessoa acharia perda de tempo, mas para nós eram as melhores horas da nossa semana.

Desculpe por ter te deixado ir.

Desculpe por ter recusado a você a minha amizade.

Espero, honestamente, que esteja muito feliz, seja lá em qual parte desse mundo gigantesco você se encontre.

Acima de tudo, sonho que daquela nossa conexão tenha sobrado algum elo, que te faça sentir, mesmo de longe, que eu sempre torcerei por ti.

Termino essa carta com o trecho do nosso poema preferido “vai, Carlos, ser gauche na vida!”

Com afeto.

O futuro.

springbird
Enviado por springbird em 24/06/2018
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