A carta que nunca te escrevi

Esta é a carta que nunca te escrevi, a carta que nunca te enviei. Esta é a carta que nunca irás ler, mas mesmo assim eu a irei escrever. Escrevo o que nunca te disse nem nunca te direi, e que tu nunca saberás, pois nela escrevo o que nunca te disse ou te direi. Escrevo-te nela o que me sufoca, aquilo que sinto, a agonia, a tristeza, ou alegria da ironia da perda, que me tira o ar que tento respirar e mal consigo. Tu não foste o primeiro, mas provavelmente serás o último, sabe Deus apenas. Quando nos conhecemos, senti algo que já não sentia há muito tempo, um sentimento que já (talvez) havia sentido, algo que não era estranho e ao mesmo tempo assim parecia, lancei-te um "Olá" breve mas sentido, e tu entraste em minha vida, não sei se eu na tua, mas com certeza tu, sim, entraste na minha, amei-te logo da primeira vez, quis tocar-te, mas parecias longe, embora perto, sufoquei alguns outros sentimentos e momentos da minha vida estraçalhada em pedaços, gritei por dentro, me sufocando até não poder mais, confiei em ti, abri-te meu coração como nunca já não o fazia á muito tempo, mas nem tudo te falei, tive medo quando deste um passo como que, isso não é nada, isso passa, o grave é o que estou a passar, sim, não disseste estas palavras assim, mas foram estas as palavras que me transmitiste nesse momento. Retrai-me e parei, coloquei um falso sorriso como sempre faço nestes últimos anos de minha vida, e já cá canta meio século, como o tempo passa depressa, nem dei por isso, mesmo em meio a tantas agonias e alegrias, por vezes parecia que o tempo não passava, mas sim, já estou com 50 anos, e tu?, sabes quantos tenho?, lembras-te desse número redondo?, não creio. Sei..., o amor não tem idade, nem sexo, nem credo, nem cor, mas tem que haver o que te esqueceste sempre, ou não, depende do que sentias no momento... Escrevo esta carta porque nunca a irás ler, porque nunca saberás o quanto eu sofri, e talvez um pouco por cobardia minha, mas este sou eu, sofro e se sinto que algo não vai modificar, sim, eu calo-me, e sofro, choro em silêncio, fechado em mim, só Deus sabe os porquês. Um dia, se bem te lembras, abri-me contigo, afinal era altura de partilharmos o bom, o mau, o assim assim, o dia a dia, era altura de nos conhecermos melhor, de nos amar-mos, de sabermos e partilharmos nossos sentimentos, nossas vidas, e assim comecei, disse-te dos maus momentos que estou passando por ver o ser mais querido e amado da minha vida doente, disse-te que ela, meu anjo na terra que Deus enviou para ser minha mãe, tinha a maldita doença de Alzheimer, o sofrimento dela, o meu, a falta de viver que tinha, e tantas outras coisas, e tu me contaste de ti, de teu pai, de tua mãe, enfim de ti e tudo que te afligia, falámos ainda das alegrias vividas, dos momentos de sorriso e cara lavada, mas um dia dei comigo apenas escutando, nada mais, tudo começava apenas girando à tua volta, mesmo assim fui dando espaço em mim para ti, querendo por vezes falar, tu querias algo que naquele momento eu não desejava, escutar-te, precisava de carinho, de amor, de compreensão, ainda tentei falar, mas de nada serviu, tu não escutas-te, ou não quiseste escutar (não sei), e assim fui deixando (culpa minha) por tanto te querer senti que te perdia, mas tu não. O tempo avançava e entre nós foi-se cavando um fosso de dimensões que só eu via, porque tu, sempre que querias me tinhas, cansei, sim, cansei, fiquei cansado de tudo, de

mim, de ti, de tudo, mas queria-te tanto, agarrava-me a ti ou aquilo que ainda representavas para mim e seguia caminho. Chamei-te a atenção para tudo, mas sempre conseguias sair de alguma forma da conversa, sempre pensando e tendo a certeza que eu te esperaria de braços abertos. Por um tempo fui deixando tudo rolar pelo caminho, sofria calado, pois de nada adiantava falar, estávamos longe... A certa altura me procuraste, mas não me encontraste, eu sei, sim, eu estava lá sempre, mas não te queria ver, escutar, sentir, tantos sentimentos confusos se rebelavam dentro de mim, foi ai que sem olhar a nada mais te enviei o nosso final, sei que me escreveste, mas não quis saber, não podia saber, porque tudo iria ser desculpas e eu sei que cairia de novo na mesma história. Calei, chorei, choro ainda, mas nunca sei se por te ter perdido, se por nunca te ter tido, se porque acabei tudo na hora errada.

Álvaro Gonçalves Correia de Lemos
Enviado por Álvaro Gonçalves Correia de Lemos em 11/10/2018
Código do texto: T6473569
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