Carta de Aniversário

Hoje é o dia do teu aniversário. Queria ter esquecido, mas não esqueci. Esforcei-me para esquecer não somente o dia do teu aniversário, mas também tudo que se referisse a ti. Essa decisão tomei-a naquela tarde em que fui levar pessoalmente o livro que, tempos atrás, havia prometido dar-te. Como se fora o presságio de uma revelação, no instante mesmo em que tu entraste no carro, o céu desabou em tempestade violenta e ventos uivantes. Tu mal me cumprimentaste. Não perguntaste pela minha saúde, nem quiseste saber sobre meus afazeres. Não abriste o livro à procura, talvez, de uma dedicatória. Não agradeceste nem ao menos com um simples obrigada. Alegando pressa, saíste e preferiste enfrentar o aguaceiro que rapidamente imergiu-te e ensopou tuas vestes e o livro que levaras à cabeça à guisa de guarda-chuva. Saí também, gritando inutilmente teu nome, tentando demover-te da ideia obtusa de arriscar-te no granizo que começava a atingir o asfalto com seus tiros brancos e duros. Em vão. Tu ias ligeira, sem olhar para trás. Não veriam minhas lágrimas se alguém ali houvesse, posto que a chuva com elas se misturasse e exaurisse, a partir de então, aquele restinho de amor por ti que eu ainda, de teimoso, trazia no coração. Não fora um amor possessivo, como poderias imaginar, o conviver exigente de marido, o poder disciplinar de pai dos teus filhos. Não, nada disso. Mas sim, tinha sido sempre um querer bem, um querer que tu tivesses enfrentado, tantas vezes quantas fossem necessárias, os exames de credenciamento e te tornado em uma competente advogada, com aquela mesma exuberância que tinhas enquanto estudante de Direito, um querer que tu tivesses sido bem-sucedida, um querer que tu tivesses crescido como pessoa, um querer que tu pudesses enxergar além da estreiteza com que vias o mundo. Através dos anos, torci para que te construísses, para que te realizasses, para que alcançasses tudo que almejaras na vida, para que, num momento mágico, a chama de uma reação se acendesse em ti e te guiasse para um futuro melhor. Ali na chuva, estático pela percepção e pela impotência diante dessa imutável realidade, fiquei me perguntando por que, meu Deus, ainda insistia em tentar tocar a alma dessa mulher, como se isso fosse a missão de minha existência? Não. Não mais. Estas palavras que ora escrevo são as últimas que, talvez, tu saberás vindas de mim. As últimas que ouvirás do meu pensamento em ti. Talvez um dia fiques ciente de que eu já não esteja por aqui. Afinal, ainda que eu viva um século, vivo eu o derradeiro quarto de minha vida. De ti, nada mais preciso saber. Então esta carta de aniversário é também uma carta de adeus.

HFigueira
Enviado por HFigueira em 17/06/2019
Reeditado em 17/07/2021
Código do texto: T6675324
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