Carta de uma filha de pai alcoólatra para sua mãe

Querida mãezinha,

Como você está?

Queria dividir algo que estou sentindo contigo, mas por favor não me interprete mal...

Hoje, ao retornar para minha casa, percebi o quanto prezo por viver em paz. Amo minha paz!

Quando penso em encontrar alguém para mim, percebo que almejo uma pessoa que tenha dezenas de defeitos, menos o alcoolismo.

Te escrevo sobre isso porque tudo o que espero ser em minha vida é o extremo oposto do que é meu pai. Tudo o que ele poderia ter sido e não foi por conta do vício.

Todos os talentos que ele perdeu por descaso com a própria vida.

Viver sem nenhum objetivo é, em minha concepção, uma grande tristeza. Isso não tem nada a ver com a idade dele, tem a ver com o caminho que ele construiu, e que não deu em lugar nenhum.

Talvez se eu chegasse aos meus 63 anos e olhasse pra trás e percebesse que minha vida não contribuiu em nada pra mim mesma e pra minha família, quem sabe... até eu beberia.

Não te falei, mas nossa amiga aí do interior, perguntou ao meu pai, enquanto jantávamos: "Macho, para de beber...por que tu bebe tanto!?" E ele respondeu: "Pra ser feliz! Você quer que eu seja uma pessoa triste?"

Mesmo antes de imobilizar meu pai com uma chave de braço e ter demonstrado o quanto sei me defender dele, fisicamente, já estava refletindo sobre esse curto diálogo do meu pai com ela, um dia antes desse triste ocorrido...

Cheguei à conclusão que ele nunca vai deixar de beber.

É muito mais que um vício, é uma condição de ser e existir.

Ele e o álcool são uma coisa só. "Eu bebo porque tenho frio" - ele costuma falar.

A bebida é responsável até por regular a temperatura dele.

O frio da quase morte, haja vista que ele tem uma semivida.

Um homem sem trabalho e sem ocupação, é um homem quase morto.

Agora eu entendi porque eu tive tanta frieza ontem. Não foi controle não.

Parti pra cima de um zombie, um morto vivo.

Não acredito mais na sinceridade do sorriso dele. Nem na raiva e nem na tristeza do seu marido.

Acho que meu pai morreu há tanto tempo, que eu nem lembro mais se eu o amei...ou por qual motivo.

Não vejo mais meu pai nesse homem. Desculpe, mãezinha, pelo desabafo...

Porém, quero deixar claro que te escrevo isso sem raiva alguma no coração.

Meu pai era o mais sonhado por todos meus colegas de rua e amigos de escola. Sinto que ele se foi e eu nem tive a chance de dizer o quanto ele era importante pra mim...

Hoje é um ser humano com sinapses neuronais descoordenadas, que não fala coisa com coisa e não sabe desejar mais nada pra si, a não ser a próxima dose.

Vive de uma alegria inflamável e etílica: a do álcool. Onde tantas pessoas se anestesiam do que tem que enfrentar ou do que querem esquecer.

Ele é só mais um dentre tantos que vivem assim.

Infelizmente, foi com o meu pai...foi entre um copo e outro que meu pai se foi e eu nem percebi. Nem sequer tive a chance de me despedir.

Ecoa em minhas lembranças uma estrofe da canção que ele inventou pra nos divertir:

"Vou me acabar na cachaça por causa da mulher.

Ela é uma desgraça, Eu quero ela e ela não me quer"(...)

Nunca imaginei que ele estivesse falando sério. Nunca!

Acabou-se meu pai e eu nem sequer tive a chance de agradecer quem ele foi em minha tenra infância. Meu pai se foi.... meu pai se foi.

Sua filha,

29 de julho de 2019.

Andréa Agnus
Enviado por Andréa Agnus em 29/07/2019
Reeditado em 19/09/2021
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