Carta a um amigo

Parece-me que fui com muita firmeza à frente e atravessei o chão por tolo. Entendo o que me dizes e, na verdade, confirmando o meu desalento, este é o juízo mais reto, não faria de outra forma, não há como velar isto. Não te enganas ao perceber que me tenho decaído de modo externo, mas, mais vergonhosamente, de modo interno. Quando nos conhecemos, eu havia de uma grosseria e uma paixão pelas coisas, uma barbaridade, porém fui me indo vereda, vale e mundo a dentro, dando por barata minha pessoa—e, por fim, como era de se esperar, minha pessoa se foi. Quando visse o eu que conheceste, que era um amigo de se ter aos braços, este de agora, sobre qualquer dúvida, receberia uma galhofada e uma troça. Não pude sê-lo, o sobrepujador das coisas e do tempo, algo que bem poderia ter aldrabado noutrora—e não te seria estranho fazê-lo—, se bem que dado o acaso, quiçá. Os homens morrem—quem diria—, morrem em vida ainda, somente não o sabem—eis meu cadáver. Escrevi-te, noutra data, sobre como fazíamos os homens divididos quando não os sabíamos amar no ódio e que assim estavam eternamente mutilados—eis meu estado: quero amar e odiar, sendo amado e odiado, quem me perdoaria? Queria ser duma estatuária em cristal e me esborralhar na queda e fazer sangrar quem viesse à ajuda, quem me perdoaria? Queria ter em mim o farol que guia sempre à perdição e ao mar soturno barcos que se afundassem em mim, quem me perdoaria? Entretanto, espero que ao menos isto ainda guardes contigo, a única verdade que jamais tratei por certa ou falsa, mas a modo de se tratar qualquer perfídia profética, minha sagrada boa nova. É, no entanto, justo falar que, apesar dos meios, não traí a coisa mais íntima que já te disse, que sou um mentiroso, que professo o mal, o meu caráter último, minha natureza, minha propriedade—eis meu cadáver.

Curioso como guardamos estas múmias, seja na espera de vida nova ou memória imbuidora, é sempre um sinal de além. Não te enganes quando uns disserem que se deveria livrar desta morbidez. Faça o favor divino de, quando disseres de mim, declarar que era ele dourado e rigoroso cantarino; e se desacreditarem e rirem-se, ria-te também. Este é o professar o mal e dar a pata que tanto fiz como prosélito. Usa da minha víscera e terás sempre o rosto resplandecente de dor e gozo. Ebulidos meus miúdos, terás o unguento e a comezaina de cessar quaisquer bocarras, as de fome e as de espírito. Guardados os meus ossos dentro de minha pele, terás algo similar àquilo que um dia germinou teu amigo. Ademais, este pouco seria somente um pequeno floreado sob teu já imenso jardim—não te significaria nada, isto ainda haverás de aprender.

Ah, sou um egoísta da pior sorte—sabes bem disto. Não retribuo nada que a mim dirijam, seja lá bem, mal ou a decepção que por mim tens agora. Isto nada me afeta, ainda és a alma que mais tenho carinho e o único ser amigo do meu espírito—independentemente se um dia desejes não o ser. Serás sempre alguém que guardarei no fundo do peito—é uma acomodação penosa, confesso, um lugar ruim de se estar. Mas se ainda guardas o coração aberto, saiba que esta é cela mais dourada e a mais musicada, onde, junto de ti, habito.

Abraço de um amásio arrebatado,

Henrique.

H Reis
Enviado por H Reis em 17/12/2019
Reeditado em 25/02/2020
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