O Céu que nos Protege

Por Everaldo Soares

O céu se partiu com as luzes de fogos de artifícios, anunciando a chegada de um novo ano. O barulho despertou os moradores das casas, dos edifícios e condomínios de luxo, até os cantos mais longínquos e esquecidos aonde os olhos já não podiam mais alcançar. Salvo o acaso lembrasse das ruas esburacadas nos subúrbios e favelas, por onde transitavam andarilhos e mendigos com suas velhas carroças de papelão e latas de cervejas vazias.

A confusão e a buzina dos carros despertou Basílio, um morador de rua que dormia preguiçosamente sob o alpendre da igrejinha Santo Antônio de Pádua, num bairro ali próximo.

A noite era de muito falatório e fumaças de cigarros, Basílio pôs-se de prontidão de pé em frente da igreja enquanto olhava o movimento na praça. Tinha uma barba extravagante e um traje em farrapos, parecia de longe um sumo-sacerdote da miséria em pessoa. Ele estava sozinho, porque seu melhor amigo era seu cachorro e o abandonou por causa do barulho dos fogos. Dizem, não sem razão ou motivos, que nunca se viu nesse mundo, um pobre andarilho que não tivesse um cão que vivesse da caridade de seu dono. O que faz do mendigo seu senhor.

Já pela manhã bem cedo, Basílio ficara curioso com o movimento na avenida principal. Estava admirado com o luxo das caravanas, os enfeites das árvores e as pessoas bem vestidas. Uma multidão se vestia de roupas brancas, iam se amontoando como bolas de neve sentadas umas sobre os ombros de outras com garrafas de bebidas nas mãos, pessoas por metros, pessoas por quilômetros, e como se não bastasse iam deixando para trás mesas fartas de restos de comidas intocáveis para serem mais tarde, jogadas no lixo.

Para Basílio, a fome era uma inimiga que devia ser vencida com a paciência, ela ataca ao meio dia, a meia noite e, com gestos nobres de alguns bons cidadãos de velhas tradições, podia se confraternizar muito bem com uma boa lata de lixo com um pouco de sorte. A fome é uma coisa que para muitos, nem de longe passaria pela cabeça o que seja. Mas ele sabia.

Basílio não dominava a arte de ler ou escrever, os jornais eram para ele nada mais do que cobertores improvisados. Sendo analfabeto, não entendia a sociedade nem conhecia seus representantes, assim como não tinha religião. Ademais, para Basílio, a política e as religiões, assim como de Deus e o diabo "só tinha ouvido contar histórias". Ouvira isso uma vez no orfanato onde fora deixado aos seis anos de idade pela mãe, que tinha uma doença terminal. O pai morrera vítima de um assalto, o criminoso tinha dezesseis anos. Sua família e seus conhecidos, eram seus companheiros das ruas, eram vultos de homens e mulheres maltrapilhos que iam e vinham depois de percorrerem léguas, por ruas, estradas e caminhos, conduzidos pelo instinto de sobreviver e voltar a ser mendigo mais um dia.

Ao contrário da sociedade civilizada, onde a primeira vista as pessoas eram normais, mas não se sabia por qual motivo, alguns a vista dos problemas, impelidos por uma visão distorcida da vida, se lançavam de altos edifícios para a morte certa. Outros se jogavam de pontes e viadutos. Ao contrário dessas pessoas, esses habitantes insignificantes reservaram sua morte para o último dia de suas vidas.

Era uma manhã de outono e uma brisa fria cobria tudo ao redor, Basílio acordou num banco da praça atacado de uma moléstia, uma intoxicação causada pela ingestão de comida estragada. Um transeunte avisou a secretária da igreja a vista da situação que se encontrava o pobre homem ali.

Nas ruas, as pessoas caminhavam apressadas e preocupadas em resolver toda a sorte de imprevistos que nunca foram resolvidos e que nunca faltariam amanhã. O vento frio diminuía, e Basílio - pobre diabo - ia ficando cada vez mais irreconhecível, os ruídos dos motores iam ficando cada vez mais baixo para ele, a noção de tempo se perdia, suas vistas escureciam até que perdera a consciência.

Tempos depois se ouviu um leve passo de botas na calçada e a porta de um carro se abriu e Basílio fora colocado em seu interior. A batida da porta cortou a praça e atravessou a igreja e o veículo desceu as ruas movimentadas até desaparecer. Basílio permanecia em silêncio, cada segundo... cada minuto.

Ninguém mais o viu depois desse fatídico dia, seu vulto surdo-mudo desapareceu da multidão, das praças, das ruas. Os jornais não davam notícias dos mendigos, como falavam de horóscopo e meteorologia. No entanto, um inciso pronunciamento da Câmara dos vereadores, ponderou o assunto num certo momento. E o assunto não era outro, senão os males que afligiam os moradores das ruas e favelas. A comissão de direitos humanos também estava de prontidão, tudo isso a mais de meio caminho das eleições.

"Os indigentes e viciados são, de certa maneira, uma responsabilidade social e devemos tratar deste mal", disse um renomado político de modo vulgar e carismático, o que atraía mais ainda a atenção de seus eleitores. "Não basta ser um bom político, há de ter de vencer os demônios", dizia um diácono pentecostal enquanto vendia seus versos para uma multidão de fiéis. Parecia que ambos estavam determinados a promover a felicidade do povo, cada um a sua maneira. Ou esmagando as pessoas em nome de suas crenças, ou escravizando-as com palavras e promessas como se só para isso tivessem nascidos, como se só para isso tivessem vivido cada segundo... cada minuto. Cada um encerrado em si mesmo, como mendigos na multidão.

everaldo.uni@gmail.com