Carta a Frances sobre o amor - Inverno de 2020

São Paulo, dezenove de junho de 2020.

Querido Frances,

Você costuma dizer que não tenho escrito sobre o amor nas cartas que temos trocado. Sobre meu trabalho, chegou a falar que meu estilo de escrita era tão visceral que me perdia no meio das muitas angústias da vida e esquecia da maior delas: a paixão. Sim, porque naquele dia que filosofamos na calçada ao som de Chico e regados de rum barato, chegamos à conclusão que o amor era o nosso céu, mas também nosso maior inferno. Portanto, meu estimado amigo, te escreverei hoje sobre algumas de minhas noções sobre o amor.

Andam dizendo, eu sei, que deveria fazê-lo, porém o que não sei é como me pintam cometendo tal proeza, pois não tenho muito o que dizer a não ser impressões pessoais criadas a partir de um ângulo não tão palatável aos olhos de tantos que idealizam as graças do grande deus Eros. Desse modo, te digo que andei pensando sobre tudo isso e adianto que cheguei a uma conclusão: o amor, entendido como um substantivo abstrato, é um conceito que só ganha seu sentido quando sentido, entende o que estou dizendo? Bem, é que penso que somente descobrimos o que significa quando o vivemos na literalidade. Assim, o amor, como outros substantivos abstratos, é um conceito diferente para cada ser.

Não obstante, costumo perceber que há certas semelhanças na descrição do sentimento quando vindo de origens afetivas desde mães, pais, avós, tios, amigos, até donos de bichos de estimação, soando parecido quando se prestam à árdua tarefa de explicar o que sentem. Mas, em contrapartida, entretanto, quando falamos de amor romântico, sinto que encontro nos discursos mais diferenças do que semelhanças, de modo que a complexidade de tal sentimento, quando vivido por cada qual com sua individualidade, mostra-se como fator diferenciador direto.

O amor romântico, para mim, querido Frances, é mais uma miragem.

Posso ver sua cara de decepção ou estranhamento ao ler essa última sentença por mim aqui proferida, pois bem, meu caro, te digo que ao final desta jornada entenderás muito mais do que agora consigo explicar. É que, perfeccionista que sou, não posso deixar de imaginar tal sentimento como algo que fabrico, moldo, lapido e pinto, o que exercito todos os dias na minha cabeça. E em minha cabeça ele é o oposto do que vejo hoje sendo praticado, se assim posso dizer. Não somente diferente, meu caro amigo, o oposto.

O que ocorre é que já tentei encaixá-lo em alguns dos novos conceitos que têm surgido por ai para explicar as novas formas de se amar, já que não me atraio pelos clássicos e, mesmo procurando arduamente, não consegui encontrar categoria apropriada para tanto. Não é amor livre, amor próprio, amor aberto, amor fechado, é outra coisa, meu amigo.

Justamente esse meu não entender que me impede de considerar abrir-me para o desconhecido, porque ele vai muito além de conceitos e definições gramaticais, ele me atinge ao meio e molda o que sou hoje e talvez até o que serei no futuro.

Não, não é medo Frances. Ou talvez seja. Talvez seja mesmo um temor de ter destruída, mais uma vez, a ideia de que mereço ser feliz além do que dizem por ai. Nasci na época errada, Frances, você sabe disso. Não sinto encanto no cortejo rápido, impessoal, repetido e sexual. O copiar e colar dos teclados me impedem de sentir veracidade em palavras que leio em telas e, apesar de amar profundamente o ato de ler, quando trata-se deste tema, ainda prefiro ouvir, pois sinto que o ouvido tem o caminho mais rápido até alma. Minha geração, Frances, perdeu-se na habilidade de escuta e recusa-se a ouvir pessoas falando por mais de 1 minuto, até mesmo presencialmente, eles se perdem nas palavras.

Pergunto-te, então, meu amigo: como irei amar?

Juro-te que tentei tantas vezes adaptar-me e falhei miseravelmente. O resultado de todas essas falhas foi que tive que me reinventar e procurar remendar tudo o que havia construído. E como, naturalmente, à medida que envelheço, construo mais e mais coisas, são mais coisas que estão sujeitas a serem quebradas novamente, entende? Algumas delas, meu bom amigo, simplesmente nunca voltam.

Não poderei afirmar, em definitivo, que não amarei novamente, mas por enquanto estou omitindo esta parte de minha vida. Escrevo, portanto, sobre as coisas que sinto no dia-a-dia, que me são palatáveis, dores diversas que se originam de outras artérias, pois, meu querido Frances, elas existem. O que me intriga é que muitos não as veem e cobram-me escrever sobre a única fonte de profundidade humana que julgam existir. Enganam-se ao manterem-se alienados da linda e triste e imperfeita realidade que está a um passo de tudo aquilo que chamamos de amor. Tente percebê-los se ainda não o fez, são lindos, Frances, minha vida além do amor romântico é linda.

Sei que te confundi ainda mais, por isso te peço perdão. Digam-lhes apenas que não escreverei o que pedem. Disse-te que entenderia tudo mais até o fim desta jornada, meu consagrado, pois saiba que ela ainda não se acabou.

Vou ficando por aqui, pois a chaleira já está fervendo, está na hora do meu café e de molhar as plantas, sentir o vento trazendo o nascer do sol e, sobretudo, de agradecer.

Obrigado a você também, por ser meu amigo.

Lourenço e Agatha mandam lembranças!

De sua amiga que tanto te estima,

Isla.

Isabela Maria
Enviado por Isabela Maria em 19/06/2020
Código do texto: T6982225
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