Eu me acuso

“O meu dever é falar, não quero ser cúmplice. As minhas noites são assombradas pelo espectro do inocente que expia ali, no mais terrível das torturas, um crime que não cometeu” (Emile Zola, J’accuse, Eu me acuso, L’Aurore, 13/01/1898. Carta ao Presidente da França).

A famosa carta do intelectual francês Emile Zola foi motivada pelo celebérrimo Caso Dreyfus. Que fez Dreyfus? Nada. Porém, ele acabou sendo acusado de praticar a contra-espinagem em desfavor da França, motivo pelo qual foi julgado e apenado na Ilha do Diabo. J’accuse é o protesto de um intelectual, o Emile Zola, que não se conformou com essa injustiça. Desse modo, inspirado em Zola e em face das ocorrências a que tenho assistido em meu país, também quero me acusar.

- Abri a você as portas da minha cidadania fraterna, mas a malversação da coisa pública causou-me o pior dos espantos. Eu me acuso por ter acreditado que a política poderia ser digna e que a ética pública seria o suficiente para fazer com que você respeitasse os sagrados direitos que me pertencem e aos meus concidadãos.

- Agi com você segundo as regras da lisura. Eu me acuso por ter sido o alvo de uma proposta de jogo sujo, no qual eu teria de me comportar como massa de manobra, e me acuso por não ter aceitado esse caminho e por entender que o ser humano não é um objeto qualquer para ser manipulado ao seu bel-prazer.

- Busquei vê-lo onde a dignidade humana pedia para que você estivesse, ainda que isso parecesse ingênuo aos jogos do poder. Meus flancos ficaram abertos a que seus crimes ganhassem a forma destrutiva de quem está disposto a aniquilar, destroçar e anular a melhor ação. Por meu espírito desarmado, ao acreditar em ações por uma sociedade mais justa e igualitária, eu também quero me acusar.

- Coloquei-me ao seu lado como o companheiro se coloca ao lado do semelhante e, de público, manifestei o minha admiração. Eu me acuso porque, desse modo, fiz-me merecedor do tratamento mais sarcástico e cruel que um ser humano pode dispensar ao outro, vendo você instrumentalizar aquilo que seria do povo, da nação, de todos nós.

- Compartilhei contigo aquilo que sou. Eu me acuso por não ter tido a malícia dos espertos, essa que afiança aos bons malandros que ninguém deve alimentar o traidor que às suas costas lhe enterra o punhal.

- Contei sempre com a verdade. Ao contrário de você, agora eu me acuso por ter sido verdadeiro, por não ter me valido de ardis, de mentiras e de jogadas sujas que só corrompem o caráter e afrouxa a conduta reta de quem se esforça por acreditar no ser humano.

- Dei a você o que me era mais caro: o meu entendimento. Eu me acuso por não ter sido um chauvinista, por não ter dado conta de ser um canalha e um insensível desalmado quando defendi as causas que nos eram comuns.

- Segui às regras do profissionalismo e da Política com “P” maiúsculo e fiz o que o dever de oficio me pedia. Eu me acuso por nunca dar conta de ser político o suficiente para fazer o jogo do fingimento, imprescindível quando a inautenticidade impera como parâmetro geral de conduta no meio político e profissional.

- Tentei ser honesto quando me apeguei aos conceitos de justiça e humanidade como qualificativos de ações concretas visando à emancipação do meu povo, a ser feita por ele mesmo. Eu me acuso por não ter aderido à panelinha. Acuso-me, ainda, por não ter me acovardado e por continuar a acreditar que uma nação se faz com ombridade e transparência.

Enfim, me acuso por ter tentado ser consciente, cidadão, honesto, educador, fraterno, solidário, verdadeiro, companheiro, profissional, coerente e por sempre ter jogado o fair play. E me acuso, mais severamente, por continuar a acreditar nesses valores.

Claro! Em face do que fazem nos âmbitos do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, meus crimes são infinitamente maiores. Sei, mereço a penas. Que elas sejam bem-vindas, entre as quais, o desapontamento, a frustração, o incorformismo e a indignação sem os quais eu poderia viver não fosse você e seus serviçais!

Porém, adianto-lhe que também ganhei alguma coisa ao longo desse tempo. Meu prêmio por tudo isso ninguém pode roubar: minha consciência permanece intacta, fundando o que julgo indispensável a quem se compreende como um homem: a honra. Essa você e seus acólitos não poderão vilipendiar. Garanto-lhe: essa certeza me basta e me faz realizado e feliz.