Carta de Verão

Juazeiro do Norte, 27 de Janeiro de 2021

Querida Julieta,

Eis-me aqui novamente a contar fatos da minha longa marcha rumo ao que eu queria chamar de nova libertação. Nos últimos meses melhorei um pouco da ansiedade que me inquietava, andei alguns dias a desanuviar a cabeça com alguns farelos de felicidade mansa e muito contida. Pois é que consegui divisar no olhar de uma pessoa a tímida chance de encontrar uma passagem por onde o mundo me abriria uma nova forma de criação. Se a memória não me engana, foi a exatos dois meses que no olhar de alguém eu vi um bocado de doçura, mas sem enternecimento. Se me perguntares quem é, direi: alguém com um rosto, e de cujo olhar não tive medo. No meu caminho já havia passado, por entre as luzes dos meus olhos, tantos vislumbres e brilhos e descobertas, mas depois de muito tempo nenhum me arrebatara o interesse com energia semelhante. Deixei-me então uma vez mais seduzir por uma beleza ainda possível de se encontrar no mundo: a beleza de um rosto simples com um olhar semelhante ao meu. Afinal, se de algum modo não parecesse com o que eu sou minha alma não compreenderia que era um olhar disposto a fasciná-la. Caí, pois, dentro de duas janelas de fina pintura. Inclinei-me a sentir ternura e beijei aqueles olhos castanhos, profundos, insidiosos. E então foi para mim como uma promessa de beatitude no meio da desordem geral do mundo. Mas, depois que nossos olhos transaram, tudo mudou.

Caminhamos tranquilos por entre sombras e palavras mudas. Um pouco de luz nas entrelinhas do meio do caminho. Um conto aqui, um canto ali. Descobri que era uma fábula. Dessas com árvores robustas a atravancar o caminho. Precisávamos de serrotes, mas só tínhamos facas cegas. Sendo assim, fiz o que era mais urgente: cortei parte de minhas raízes e o que foi cortado era o principal da minha vida sem a alegria. Eu cortei a minha perdição. Acabrunhado, corri a escrever essa carta de verão.