Carta ao calouro de medicina - leitura para o primeiro dia de aula

(Escrita com carinho para minha querida afilhada de coração Hérica Zipperer Ferreira Boing)

Hoje começa o primeiro dia de uma linda caminhada. A barriga deve estar com um milhão de borboletas, os pensamentos tão rápidos que parecem que você não vai dar conta de acompanhar e uma batedeira gostosa no coração. Curta muito esse primeiro dia, minha querida afilhada, posso chamá-la assim? Vou compartilhar algumas dicas para seus primeiros dias.

Dica 1: Fotografe com a retina os primeiros dias e grave os momentos no coração para o futuro.

Preste atenção a cada detalhe e ao chegar em casa escreva tudo! Tente gravar o maior número de detalhes possíveis desses primeiros momentos, pois jamais você viverá as sensações do primeiro dia novamente. Mas você vai precisar se encontrar com essas sensações no futuro, acredite. Vale a pena registrar no papel esses primeiros dias… É um tesouro que eu gostaria de ter. Anote como você se sentiu, o que você estava pensando. Tente colocar no papel porque você quer tanto ser médica hoje. O que te inspira? Acredite, querida, um dia quando estiver em um dia difícil de trabalho você vai querer buscar o frescor desse primeiro dia. Manter a conexão com nossa vocação e com a ingenuidade de nosso começo vai ajudar a não “criar pelos no coração”. A gente não pode se acostumar com a dor, com os problemas dos pacientes ou deixar de valorizar as pequenas conquistas. Se conseguir registre suas primeiras vezes da trilha em um diário. A primeira vez que alguém te chamar de doutora, a primeira vez que fizer um diagnóstico, a primeira vez que perder um paciente, o primeiro parto… são muitas primeiras vezes. Registre o que aprendeu naquele momento. Manter o olhar atento para essas primeiras vezes fará com que você valorize mais a jornada.

Dica 2: Os novos amigos e professores.

Vai ter muita gente nova para conhecer e vá com calma. Ouça bastante e não é dia para achar que a “primeira impressão é a que fica”. Vocês vão passar por muitas histórias novas e desafiadoras e qualquer máscara ou armadura vai aos poucos sumindo. Converse sempre com o coração aberto, seu melhor amigo pode ser alguém que você odiou à primeira vista.

O melhor professor da sua vida você pode descobrir somente quando se formar. Fale de você, mas não abra tudo. Seja um livro aberto apenas nas páginas que você escolher compartilhar e com leitores específicos. Observe ações, comportamentos e reações. Os bons e maus exemplos serão importantes. Escreva de vez em quando sobre a médica que você quer ser e sobre a médica que você não quer ser. Valorize seus professores, não é uma atividade fácil. Lembre-se de que são seres humanos e imperfeitos. Saiba analisar quem te toca a alma, quem se importa com sua aprendizagem e perceba que aquele professor que te entregar tudo de mão beijada não será tão importante como aquele que a fizer pensar em possibilidades, transpor preconceitos e limitações e transferir aprendizagens em diferentes contextos. Pergunte sempre que estiver com dúvidas. E quando um professor for especial em sua vida, fale pra ele. As pessoas lembram-se mais de criticar do que de elogiar.

Dica 3: Cuidado com a competição. Estude para o paciente e não para as provas.

Prepare-se para um Universo bem diferente. Quem passa em medicina, vestibular tão concorrido, estava acostumado na escola em ser um dos primeiros da turma. Lá no seu primeiro dia de aula você vai encontrar muitos primeiros alunos da turma. Espero que demore um pouco, mas o ambiente na medicina é sim de muita competição. Você deve sempre competir somente com você mesma, para melhorar a cada dia. Esqueça competições de notas. Nunca na minha vida em nenhum trabalho alguém perguntou que nota em tirei em cada disciplina. E eu tenho tranquilidade para dizer que nem toda avaliação, infelizmente, mede aprendizagem. Qual a diferença entre um 6,8 e um 7,1... Será que esse 0,3 fará um ser melhor médico que o outro? Quem aprender para a vida por ter tirado 7 na prova e como aprendeu com o que errou, pode saber o que fazer em atendimento real. Já é possível que alguém que tirou 10, mas o fez colando ou decorando, não saiba o que fazer frente ao paciente real.

Busque aprender com o erro e não acertar da primeira vez. A gente aprende muito mais com os erros que com os acertos. Erre bastante e rápido para aprender mais. Pergunte, peça muito feedback. Peça feedback do professor, do colega, do paciente, da equipe. O olhar do outro vai fazer você crescer mais rápido. Não existe pergunta boba. Existe só a bobagem de ficar com dúvidas. Fazer novos porquês sobre antigos porquês é necessário para achar soluções, inovações, caminhos e estratégias. Exercite e compartilhe sua vulnerabilidade, se ainda não leu Brene Brown se delicie. Mate a perfeição pois ela nunca existiu e quem a busca sofre, não termina o que começou e perde a oportunidade de aprender.

Leia e escute muito em inglês. A maior parte dos artigos estarão em inglês e não conseguimos nos atualizar buscando textos traduzidos ou só em português. E, se puder, aprenda mais línguas. Tem muito vídeo hoje de médicos no YouTube também com entrevistas. Não é qualquer vídeo, aos poucos você vai desenvolvendo o senso crítico. Quando aprender um autor novo, busque leituras e vídeos com eles. Há palestras incríveis de congressos de graça pra treinar o ouvido e o coração. Acostume com os termos em inglês e com a sonoridade deles. Assista séries médicas com olhar crítico (muito do que está lá é exatamente como apresentam) e esqueça a legenda (as traduções tem muitos erros, você vai perceber isso).

Estude para o paciente e não para as provas. Tente fazer conexões entre o que estiver aprendendo. Valorize as bases, mas se aprofunde nas conexões, nos porquês, nos e se... Está estudando ossos do membro superior? Tente pensar em movimento, em o que acontece se a pessoa sofrer um trauma naquela parte do corpo e em como saber isso será importante para você como médica.

Sempre tente se colocar no lugar do paciente e do acompanhante dele (familiar, esposo(a), filho(a)...) Pense como aquela doença, sinal ou sintoma novo que você está aprendendo pode impactar em que passar por isso ou acompanhar o ente querido passando por isso. E comece a treinar jeitos simples de falar cada um desses conceitos, seu paciente não saberá os termos técnicos que você vai aprender e falar com o paciente é uma arte. Crie mapas mentais, desenhos, infográficos para relacionar as aprendizagens. Faça desafios para você mesma, e depois celebre.

Dica 4: Sempre será trabalho em equipe.

Você vai aprender ao longo da faculdade como é complexo desenvolver o raciocínio sistêmico sobre o paciente. E para desvendar tudo isso somente com muitos profissionais e muitos olhares. Valorize todas as experiências em que puder conviver com enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos e demais profissionais. Você vai aprender muito com eles e será uma médica mais completa. Observe como os diferentes profissionais se tratam nos espaços de saúde e comece a modelar o seu comportamento. Aprenda a se posicionar como educadora, o médico sempre será educador. O paciente terá que confiar em você e em sua explicação para seguir o tratamento ou orientações indicados. Portanto, treine suas habilidades de comunicação sempre que puder, seja com o técnico que for fazer um conserto na sua casa, com o garçom confuso no restaurante ou a atendente atrapalhada em uma loja no seu primeiro dia de trabalho. Desenvolva a arte da clareza, do carinho no tom de voz e da escuta ativa (ouça, ouça, ouça). Preste atenção naquilo que não é dito, mas que também é transmitido na mensagem. E peça feedback também para essas pessoas. É fácil cometer gafes na comunicação, e quanto mais rápido aprendermos, melhor. Peça desculpas quando sua mensagem não sair como você gostaria. É normal errar, o que não é bom é persistir em ações que podem ferir sem intenção por não refletir no impacto que temos nos outros. Sempre trate os mais velhos por senhor, senhora, a menos que te corrijam. Errar para mais nessas horas é melhor. E não tenha medo de perguntar novamente o nome das pessoas, chamar pelo nome é melhor, mas esquecer os nomes é bem comum.

Dica 5: Valorize as raízes.

Sua vida será atribulada, mas você sempre conseguirá preservar um tempo, mesmo que breve, para falar com seus pais, avós e amigos do coração. Coloque na agenda, torne esses momentos compromissos como o horário de uma aula. Mantenha laços com quem torce por você de verdade. E quando a pandemia deixar, vá estudar semiologia com seus pais e avós. Eu me lembro de tardes maravilhosas aferindo a pressão de meus avós, auscultando o tórax, examinando reflexos etc... eles vão achar tudo lindo, acredite. E você criará memórias afetivas que auxiliarão na retenção da aprendizagem. Curta os abraços apertados quando isso for possível. Deite no colo de seus pais, avós e deixe que eles te tratem como criança por alguns momentos. Deixe ser cuidada. Não fique brava com excesso de perguntas e preocupações, agradeça ter alguém que se interessa por você e sua vida. Crie os limites onde for necessário, mas faça isso de maneira bem carinhosa.

Dica 6: Aprenda sobre saúde, sobre a história da medicina, mas nunca se esqueça de que um bom médico sabe mais que apenas a medicina.

Aproveite os primeiros anos pra ler sobre a história da medicina, é encantador entender como tudo começou e vai te trazer temas para muitas conversas. Isso também te ajuda a valorizar a ciência e nosso percurso. Não foque apenas em aprender sobre doenças, foque em saúde mental, espiritual e em estilo de vida, mas também em cuidados paliativos. Um bom médico sabe que nem sempre vai “curar” a doença, muitas vezes vamos diminuir dor, sofrimento, angústias e às vezes apenas dúvidas. O paciente gosta de conversar. E para conversar bem seja culta, leia romances, assista bons filmes, vá a museus, curta paisagens da natureza e arquitetônicas. Tenha histórias para contar que não esteja atrelada à medicina. Treine os olhos e os ouvidos para perceber como o outro se sente. A arte ensina a gente a ver além do óbvio. Converse muito com idosos e aprenda com eles como explicar de um jeito mais simples. Converse muito com crianças e mantenha aberta uma rota direta com sua infância.

Dica 7: Para cuidar do outro cuide primeiro de você. Reconheça seus limites, diga não. Divirta-se, de muita risada. Assista e leia bobagens que você teria vergonha de compartilhar. Dance em casa com a música alta! Cante no banho. Arrume a mesa de uma forma bonita mesmo que esteja sozinha. Respeite o tempo para comer. Pare um pouco, respire, saboreie os alimentos, os aromas, o tempo, o silêncio. Aprenda sobre você, mantenha um diário para tirar da cabeça os pensamentos ruins e as boas ideias. Mantenha seus hobbies. Faça alguma atividade física, nem que seja caminhar algumas quadras com a cabeça vazia e olhares atentos ao seu redor. Aceite desde já que você nunca saberá tudo e que quanto mais você aprender sobre você mesma, mais você poderá trilhar o caminho para seus sonhos. Respeite seu tempo de aprendizagem, seja amorosa com você mesma. Vai ser um caminho lindo em que encontrará sim muitas pedras e espinhos, e aprender com eles fará de você uma médica mais completa.

Termino essa carta dizendo que ela não é fonte inesgotável de problemas, soluções ou aprendizagens. Mas que você pode buscar em mim uma fonte inesgotável de inquietude e que estarei pronta para te ouvir e apoiar pois o destino final não é a formatura.

A largada, o caminho e o destino são sempre o paciente. E este sim é fonte inesgotável de problemas, soluções e aprendizagens.

Com amor,

Aline von Bahten (Dinda)