Estranho no ninho

Sentimental. Já faz quatro meses que tudo aconteceu e eu ainda choro. Se passaram mais de cento e vinte dias e eu ainda sinto. O relógio já marcou quase três mil horas desde que você se foi e eu ainda não aprendi a lidar com a saudade que arde o peito.

Nesse tempo olhei bem dentro de tantos outros olhos que não os teus e não consegui encontrar aquele olhar que se fixava no meu como quem é hipnotizado pela Medusa. Lembro de acordar pela manhã e te ver estático, me observando como uma estátua, como se eu fosse uma estátua daquelas cheias de detalhes que merecem ser admiradas por horas.

Da última vez que lembrei desse teu olhar os meus olhos marejaram, porque, mesmo depois de procurar tanto, não achei amor que tivesse voz e que falasse com os olhos como o teu. E agora o marejar dos olhos se dá outra vez quando meus ouvidos percebem que a música aqui deixou de tocar pra dois e que a playlist que toca na tv do quarto que era nosso não é mais a tua.

Eu até coloquei pra tocar as músicas que a gente costumava ouvir enquanto cozinhava e tomava aquele vinho, mas elas não soam como antes, nada é tão bom como antes, eu não sou mais feliz como antes e é tudo que eu queria ser. Eu até busco uma saída nos tóxicos, ou em amores líquidos que nunca serão como o nosso, sólido, mas nada disso me sacia, porque não tem ninguém que sexualmente me devore e emocionalmente me proteja como você fazia.

Tudo era tão concreto e agora virou pó, o mundo é mesmo um moinho, triturou nossos sonhos sem dó. E se águas passadas não têm força pra mover moinhos, me explica como as lembranças dos teus olhos cor de mar tem força suficiente pra me puxar pro fundo do abismo. Me explica como posso não saber mais dizer teu nome sem que os lábios tremam e o coração palpite, ou como é possível ouvir tua voz pelo celular, depois de tanto tempo, e ainda me arrepiar lembrando do jeito como ela soava quando você me falava coisas ao pé do ouvido.

Me explica como os enquadros que guardei dos traços do teu rosto iluminado pelo sol das oito da manhã ainda são capazes de me fazer perder o sono, ou como a cama que antes era grande o bastante pra nós dois agora parece pequena quando me rolo de um lado pro outro buscando encontrar o teu corpo entre os lençóis que você sempre bagunçava só pra me irritar.

E eu até troquei alguns móveis do quarto e mudei outros de lugar pra ver se a minha memória fotográfica parava de me pregar peças e me fazer te enxergar sorrindo pra mim em todos os cantos desse cômodo. Sabe, até que ficou bom, mas algo ainda me parece estranho, me sinto um estranho no ninho, eu estranho meu próprio ninho porque você não está aqui.

Angelica Stefaniak
Enviado por Angelica Stefaniak em 09/03/2021
Reeditado em 18/08/2021
Código do texto: T7202962
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