Carta para Débora I

segunda-feira, 17 mai 2021 02:30 PM

Querida Débora,

É muito difícil contar todas essas coisas, mas se existe alguém para quem eu tenho coragem de me abrir, esse alguém é você. Sei que você não vai me julgar e que vai me compreender. Eu sei que preciso compartilhar tudo isso com alguém, sei que isso vai me ajudar. Mas prefiro escrever uma carta porque,como eu disse, é muito complicado falar tudo isso cara a cara.

A primeira vez que eu ingeri álcool foi quando eu era um feto. Por sorte eu não tive problema com abstinência ao nascer porque minha mãe também não parou de beber durantes os cinco anos em que me amamentou, então "tudo certo". Fica fácil perceber a problemática da coisa toda aí. A normalização do consumo excessivo do álcool sempre esteve presente na minha vida. E quando eu digo sempre é sempre mesmo.

As minhas lembranças de infância são povoadas por copos de cerveja, recordações de meus pais e familiares bebendo e isso pra mim sempre foi muito comum. Todos os adultos ao meu redor bebiam frequentemente. Minha mãe e suas amigas/ vizinhas ou mesmo e na maior parte das vezes sozinha... Meu pai aos fins de semana... Os dois na companhia um do outro... Sempre foi assim.

Eu não gostava da forma como eles ficavam quando bebiam na maior parte das vezes. Mas confesso que algumas vezes era legal porque era quando íamos a algum lugar como um restaurante, praia ou casa de alguém. Tenho também recordações de ser negligenciada e trancada no quarto, forçada a dormir mesmo sem sono enquanto meus pais bebiam e - hoje tenho consciência - faziam sexo em outro cômodo da casa enquanto minhas irmãs mais velhas estavam fora, na casa de uma tia. Conhecendo minha mãe e vendo o que ela costumava fazer com a minha irmã mais nova, imagino que ela também tinha o hábito de me medicar com alguma coisa que dava sono e tinha gosto de chiclete quando queria beber e curtir em paz , o mesmo que ela dava pra minha irmãzinha por muito tempo. Acho que era dramin em gotas ou algum estimulante de apetite. Não sei... Mas lembro que nessas ocasiões eu dormia de tarde e as vezes só acordava no dia seguinte. De onde eu tirava tanto sono? Não é bem uma lembrança nítida. Mas eu sei que acontecia algo mais ou menos assim.

Mas não vem ao caso.

Ou vem?

O que sei é que cresci em um ambiente onde as pessoas bebiam muito e frequentemente. E com 10 ou 11 anos comecei a beber também. Depois da aula. Tomava copos de cachaça com refrigerante junto com os meninos mais velhos da escola. O gosto era horrível mas a sensação era boa. Minha mãe geralmente não percebia. Uma vez ou outra sentiu cheiro de bebida em mim e me deu uma surra. Eu devo ter dito que tinha experimentado... Nem lembro mais.

Com 13 anos eu ia pra pracinha e tomava caipirinhas, cervejas. Sempre tem um carinha mais velho que paga pras meninas mais novas. E no começo não se precisa de muito mais do que dois copos de bebida pra ficar embriagado. Não preciso me estender muito na narrativa. Tive porres, ressacas... Períodos bem urdergrounds tipo sexo, drogas e rock and roll ( literalmente ). Experimentei outras drogas ilícitas. Me arrisquei um bocado. Descobri minha sexualidade. Passei do ponto em muitos pontos. Hehe Mas lá pelos vinte anos fui ficando mais calma e , digamos, minimamente centrada.

Não foi tudo assim tão linear. Nem tão bonitinho. Mas... 🤷🏻‍♀️

Depois de adulta, vacinada, casada e assalariada eu me vi com título de eleitor, conta corrente e bebendo minha boa cerveja no fim de semana. Que mal tem? É pra relaxar...

Eu não era como a minha mãe, afinal. Eu não bebia todo dia! Não começava pela manhã e ia até o fim da tarde. Não ficava sem almoçar e só parava quando não aguentava mais. Então não era como ela.

Eu só bebia na sexta depois do expediente. Eu só bebia no barzinho aos sábados. Ou no domingo antes do almoço. Ou nos feriados prolongados. Na semana só quando estava de férias ou depois de um dia estressante. Ou se estivesse muito triste. Ou muito feliz. Ou pra esquecer algum problema. Ou se quisesse me sentir bem. Ou se quisesse relaxar. Ou pra ler um livro legal. Ou porque é chique uma taça de vinho nos stories.

E de repente eu me olhei e me vi . Eu estava igual à minha mãe.

Preciso respirar um pouco agora , mas torno a te escrever em breve. Espero que você não esteja cansada da minha narração. É muito bom saber que posso desabafar com você.

Com amor, Bibi.

Escritos Limítrofes
Enviado por Escritos Limítrofes em 05/06/2021
Reeditado em 31/10/2021
Código do texto: T7271884
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