Burro, o gato que nunca existiu
Gatilhos são quase tão ruins que disparos, acredito que seriam até piores. Cada memória trazida de volta, cada lembrança que emerge como bolhas às superfície sem que você espere... Tudo contribui para o tiro certeiro.
Memento mori.
E não tem que ser um trauma trágico e cheio de nuances, não senhor. Às vezes os piores gatilhos vem em forma de um pequeno gato caindo de cara na tigela de leite e risadas no sofá.
— Vamos ter um gato idiota, por favor! — Ele disse. — O nome dele vai ser burro!
Pobre gato, eu pensei. Mas, entendia o seu raciocínio. Um bichinho atrapalhado, estabanado e ingênuo como nós dois em casa era como uma fonte de risadas, como rir de nós mesmos.
Você entendia meu humor também, mesmo as piadas venenosas e fora de hora. Eu sempre fui um ser humano horrível, mas, isso nunca te assustou. No seu retrato do futuro, nós dois e Burro estaríamos gargalhando das imbecilidades uns dos outros e ninguém teria nada a ver com isso.
Burro não chegou a existir fora dessa lembrança. Mas,.tudo bem, o futuro também não passou de um vislumbre - hoje, cruel - do que poderíamos ter sido.
Hoje você tem gatos com outra pessoa e seja lá quais forem os nomes deles, eu espero que te façam tão felizes quanto Burro me fez naquele breve fragmento do tempo.
Talvez um dia eu tenha o meu próprio Burro, ou alguém que não se ofenda com as minhas piadas de mau gosto. Eu já perdi muita coisa nessa vida e eu não me tornei ninguém interessante ao ponto de você se arrepender de ter ido embora, mas...
Eu tenho esperança, sabe?
Não que você volte - por favor, não volte nunca - mas, que um dia eu sorria de novo com a mesma facilidade.