Amor: a própria razão, o próprio Homem

Cara Bass,

São Paulo, 03/09/2021

És de fato “malheureuse dans ta vie amoureuse?”, minha amiga? Penso que não. Mas para que elucubremos ainda mais esse tema que nos consome, passemos a limpo tua bela e maravilhosa carta.

Antes do amor propriamente dito, disseste-te suspeita sobre tua condição de filósofa, e que vagas pela vida por meio do rio das incertezas, tal como as almas ditas vis. Ora, minha cara, não estás de todo modo errada; pelo contrário, banhaste teu pensamento nas águas da certeza, ao afirmar que navegas no rio daquilo que te é contrário; o incerto. Apresento-te, todavia, a diferença que te cabes! Navegas por estas águas, minha cara amiga, com teu semblante disposto. Teus olhos contemplam o que passou com melancolia, tal como aquilo que virá com ceticismo e esperança, a depender do balanço das correntes que te passam por baixo de tua nau. Aqueles, minha amiga, no mesmo trajeto que o teu, no lugar das flores que observas, dos campos elísios, nos quais teus olhos observam a matéria que passa de ato à potência, aqueles veem somente a Caronte!

Veem somente o crepúsculo de seus ídolos! Sigas, pois, com tua viagem! Aprecie a tristeza e a melancolia de teu trajeto, mas compadeça-te com aqueles que somente enxergam aos ídolos, aqueles de cujo sofrimento não lhes cabem senão atribuir ao espírito; todavia, não ao mesmo que o teu, mas ao santo.

Apaziguado o temor da impostura, sigamos, pois, com o tema em questão. E chegamos, assim, na razão. Disseste que essa última apaga-se no limiar da escuridão do amor. Para o que, respondo-te: com que direito operas a cisão naquilo que és? Como é que dizes, minha amiga, que o amor ofusca a razão, se são a mesma coisa? Acordas de manhã, passas teu café, fazes tua manutenção do corpo, e, ao fazê-los, utilizas-te àquilo que chamas de razão? Caso tu não te utilizes, ao quê é que recorres, pois? Assim é no amor, minha amiga. Caso escolhas desvendar a subjetividade alheia, estás, de fato, fazendo aquilo que já não tens escolha; estás a banhar-te nas águas as quais já te encontras: a incerteza. Como é, pois, que dizes, que o Homem aliena-se ao aperceber-se dentro daquilo que lhe é inescapável? Chegamos, enfim, ao terceiro ponto daquilo que levantastes: alienação.

Alienar-se, pois, seria incorrer em atos contrário àquilo que lhe é benéfico. E, nesse sentido, poderias dizer que amar o é. Todavia, minha amiga, alienar-se é, sobretudo, incorrer em atos dessa natureza de forma inconsciente; tens o cinismo, pois, de dizer que aliena-te naquilo que buscas de forma deliberada, com tua consciência à pleno vapor em tua nau do sofrimento humano?

Mas se ainda acreditas que amar é alienar-se, digo-te que aquilo que não é nunca pode deixar de sê-lo na consciência. Isto posto, a cada desventura que poderás vir a ter no amor, deixe-a! Não é sobre o insucesso, mas sobre o aprendizado. Nunca é sobre o outro, somente, mas sempre sobre ti. Tomei a liberdade, como sabes, de translucidar este último parágrafo por meio da forma métrica que nossos espíritos tanto deleitam: a poesia.

FORMAMOS ALGO DO NADA

Formamos algo do nada

Eu trouxe a melancolia

Você trouxe a simpatia

Formamos algo do nada

Que frutos rendeu o amor!

Para além de toda a dor

Formamos algo do nada

A forma que criamos

Quiseste pô-la um fim

Não te culpes, tenho a minha

Se segue viva não definha

O algo que formei

É teu, leve-lhe embora

Da minha forma cuido eu

Não foi essa que morreu

Formamos algo do nada

Com todo o amor e carinho, teu amigo,

Milton.