Mais uma carta de amor

Quanta vida pode caber em um relacionamento? E quantos relacionamentos podem caber numa única vida?

Vivi, há pouco tempo, um relacionamento que valeu por toda uma vida... talvez tenha sido o relacionamento da minha vida.

Sempre fui muito intensa no que tange a amor. Sempre amei demais, gostei demais, sorri demais, cantei e dancei demais, escrevi e falei e sonhei demais, tudo por amar demais e forte demais.

E esse relacionamento não foi diferente. Começou de forma intensa, me preencheu de todas as formas possíveis e inimagináveis, me abraçou e me envolveu, me protegeu e me deixou segura, mas depois, como num passe de mágica, tão intensamente como começou, também terminou. “De repente, não mais que de repente”, como bem disse o poeta.

Eu que andava tão sozinha há tanto tempo, que já não tinha mais esperanças de amar e de ser amada novamente, que já não sorria ao ouvir um nome diferente do da minha filha, que já não tinha brilho nos olhos ou música nos lábios sem que houvesse um motivo aparente, que já tinha dito a todos que havia aceitado meu destino que era ser sozinha, conheci uma pessoa que fez com que tudo isso mudasse assim, em uma única noite. E no dia seguinte, quando o primeiro beijo foi roubado, junto ele levou minha solidão, as lágrimas, as angústias, os medos, a vergonha de sonhar. Aquele beijo me devolveu o fôlego, soprou vida em meu sorriso, alegria em meus olhos, brilho em minhas falas, ritmo à minha voz desafinada. Aquele beijo foi muito mais que um simples beijo. Houve conexão ali, e não falo da conexão das bocas ou dos corpos encaixados num abraço perfeito embora estivéssemos sentados num local público, falo da conexão das mentes, dos corações, das almas... da conexão de duas vidas. Porque dali em diante, não conseguimos mais nos desgrudar.

Dia seguinte ao primeiro beijo e o pedido de namoro já veio. A resposta também foi meio óbvia; antes de haver o pedido já havia a resposta porque, por mais inacreditável que possa parecer, já havia sentimento.

Dois dias depois do pedido de namoro, recebi uma mensagem dizendo que naquela noite iniciaríamos um “caminho sem volta”, que nos tornaríamos apenas um. E ele jamais saberia o tamanho da verdade que falara. Naquela noite estivemos exatamente como ele disse que seria: “ligados em propósitos, ligados em amizade, ligados no prazer, ligados na cumplicidade, ligados no compromisso... absolutamente conectados”.

Dali em diante iniciou-se o mais incrível e lindo dos meus relacionamentos. Tão intensamente lindo, tão intensamente fugaz.

Ao lado dele eu vivi dias intensamente felizes, pude descobrir-me melhor, pude saber mais sobre meu próprio corpo e sobre meus sentimentos, pude saber mais sobre como é estar em um relacionamento que me permite que seja eu mesma. Foram noites intensas e quase sem fim, foram amanheceres perfeitos só por tê-lo junto a mim. Cafés da manhã, almoços, jantares, pizzas, queijos e vinhos... mas no fim só restaram sobre a mesa duas taças vazias e um coração pela metade.

Um amor tão puro e inocente, eloquente e relevante, forte e audaz, heroico, mas que se acovardou em dado momento. Não o culpo, embora sólido e real, havia um componente contra nós: o tempo.

Nós tentamos contorna-lo e dizer que ele não importava, tentamos agir como se ele estivesse a nosso favor e simplesmente o ignoramos, mas a verdade é que ele é atroz, um carrasco especializado em tornar o amor real efêmero. Não, o tempo não foi nosso maior aliado, antes foi o nosso maior algoz. Mesmo assim, ainda agradeço a ele por ter sido benevolente conosco o suficiente a ponto de permitir que nos conhecêssemos e nos amássemos da forma como nos amamos, por ter permitido que vivêssemos tudo o que vivemos.

Só nós dois sabemos a nossa verdade. Só nós dois sabemos o que vivemos e quão especial e verdadeiro foi. Só nós dois sabemos o que o nosso amor representou - e ainda representa - para nós. É isso o que importa: o tempo que passamos juntos.

E eu jamais poderia colocar em palavras tudo o que vivemos, mas não poderia deixar de mencionar alguns momentos marcantes: quando fiz canja e vaca atolada pela primeira vez – em ambos ele foi minha cobaia e me lembro de sua cara ao descobrir isso –, quando fomos ao Rio, quando fiz o almoço durante a semana por ser feriado na cidade na qual trabalho, do bolo que ele e a Fernanda me deram na antevéspera do meu aniversário, quando ele começou a tentar compor uma música pra ela, quando dançaram me imitando e rindo de mim, quando tocou violão pra mim pela primeira vez e quando tocou pela última vez também. São momentos preciosos demais para caírem na gaveta do esquecimento; são lembranças que levarei comigo por onde eu for, para sempre.

Claro que tivemos um pouco de problemas, mas esses sim devem ser esquecidos. Sei que eles foram importantes e decisivos, contribuíram para que nos tornássemos quem somos agora (porque o dia de amanhã sempre será fruto do dia de hoje), mas a verdade é que somente os bons momentos valem a pena ser lembrados. Com os maus adquirimos experiência, guardamos o aprendizado e descartamos o que sobrar – que geralmente é o sentimento ruim atrelado à lembrança.

Comecei com duas perguntas – e assim como o Pequeno Príncipe, eu também não costumo desistir das minhas – e não pretendo deixa-las sem resposta. Quanta vida pode caber num relacionamento e quantos relacionamentos podem caber numa única vida?

Embora eu queira muito responde-las, a verdade é que a cada um cabe a sua própria resposta. As minhas são as seguintes: Eu posso afirmar com segurança que houve mais vida para mim nesses poucos meses de relacionamento do que havia há cerca de seis anos. E eu também posso dizer que não sei quantos relacionamentos eu vivi, assim como não sei quantos ainda viverei, mas eu sei que eu desejei profundamente que o nosso tivesse sido o último da minha vida, que desejei de todo coração nunca precisar desconstrui-lo dentro de mim, que desejei ser pra sempre dele e que ele fosse pra sempre meu... já dizia a minha mãe quando eu era pequena “querer não é poder”.

O difícil não é ter que lidar com o fim; o que dói não é não ter mais seu olhar pousado em meu rosto a me admirar; o que machuca não é não ter seu abraço em minha cintura na hora de dormir... difícil é lidar com o amor que ficou, dói precisar me segurar para não vê-lo com a frequência que gostaria, machuca não ter o conforto de sua voz no fim do dia.

As nossas vidas estão seguindo, estamos tentando fazer o melhor possível para sobrevivermos, tentamos mostrar um ao outro como estamos bem e como o fim não está nos afetando. A verdade é que até a última terça-feira eu ainda estava chorando. E dele eu não sei, mas espero que esteja tão bem quanto tenta mostrar.

A minha vida está caminhando. Estou tentando manter a mente ocupada com os trabalhos e os livros e tenho tentado sair para me distrair. Mas é como diz a música do Leoni, “a minha vida continua mas é certo que eu seria sempre sua”. Sigo em frente – jamais deixaria de viver pelo fim de um relacionamento, mesmo que tenha sido O relacionamento da minha vida –, mas a saudade caminha de mãos dadas comigo, dedos entrelaçados.

Talvez Neruda tenha sentido o mesmo que sinto ao escrever “estou triste: mas sempre estou triste. Venho dos teus braços. Não sei pra onde vou”. Não, eu realmente não sei. Mas sei que encontrarei meu caminho. Embora esse relacionamento tenha me trazido tanta vida, não foi através dele que aprendi a andar, que aprendi a viver. Irei reaprender porque sou perseverante.

Meu pai gosta de contar a história de quando aprendi a andar de bicicleta sem rodinhas: a bicicleta da minha irmã não tinha rodinhas enquanto a minha tinha. Um dia eu falei que iria aprender a andar sem aqueles apoios, peguei a bicicleta dela, que era maior que eu, e fui tentar pedalar. Tomei vários tombos até aprender a hora de colocar o pé no chão, depois eu aprendi mas ainda continuei caindo. A cada tombo um esfolado e um sorriso, uma frustração talvez, mas a certeza de que estava mais perto de conseguir. Não sei quantas horas demorei, mas não parei até conseguir... e eu consegui naquele mesmo dia. Sozinha.

Embora meu pai diga que essa passagem retrata a minha perseverança e força, acredito que há mais coisas aí, como o fato de que havia quem me observasse, mas me deixou tomar os meus tombos sozinha justamente para que eu aprendesse que a vida é feita de sonhos e de muitos tombos antes que possam ser realizados. Olhando para isso hoje, noto que aprendi outras lições valiosas: sempre estive e estarei sozinha para enfrentar os obstáculos da vida, que muitos obstáculos podem ser criados por mim mesma e que eu preciso ter audácia para superá-los, que vou cair e me machucar, mas que não devo desistir, que mesmo que eu sangre a recompensa virá, que devo me entregar de coração ao que quero porque só assim conseguirei fazer acontecer, que é preciso acolher o tombo e aprender com ele para conseguir voltar a pedalar e que é preciso que haja amor e empenho, que amor e sonhos sozinhos, sem empenho, de nada valem.

Talvez esteja se perguntando o que eu ter aprendido sozinha a andar de bicicleta sem rodinha tem a ver com tudo o que falei ou com o meu relacionamento que chegou ao fim, mas eu digo que tem absolutamente tudo a ver. Veja bem, sem a resiliência e resignação que aprendi a ter naquele dia, talvez eu nem sequer estivesse digitando isso agora. Quem vive um amor como o que vivemos costuma ficar perdido se ele chega ao fim... mas eis a real questão: o amor não acabou, ele segue inabalado, o que acabou foi o relacionamento. Um amor como o nosso transforma, imprime uma digital nas almas que tocou. E não deixa sua marca apenas nas almas às quais habitou/habita, mas nas de quem pode presenciar sua existência também. Todos são contagiados pela magia do amor, e todos passam a amar; ele é tão amado pela minha família quanto me disse, ainda hoje, que eu sou pela dele.

Embora esteja fragilizada, sou forte. Embora ele seja forte, sei que está fragilizado. Somos muito parecidos, embora de mundos tão distantes.

A solidão nunca foi um fim angustiante para mim, sempre encontrei conforto em minha própria companhia. Peço licença a Vinícius para parafrasear os últimos versos de seu soneto – que estava impresso na saia que usei na penúltima vez em que nos encontramos, por sinal – quando a morte vier me encontrar, essa angústia que aperta os corações da maioria das pessoas que a temem, sorrirei feliz ao dizer que tive um amor que foi infinito enquanto durou.