Nunca foi um monstro

O caso da atriz Klara, o caso da menina de 11 anos, o caso de minhas amigas, colegas de trabalho, colegas de curso, primas, tias, avós, me lembram os meus, sim, no plural. Desde cedo ouvia muito que deveria me cuidar, cuidar como me vestia, como me portava, porque era uma mocinha. Ouvia como existiam monstros por aí, ouvia que não podia falar com estranhos e nem aceitar nada destes. Assim fiz, fui uma criança obediente, mas não foram esses que me machucaram, não foram os estranhos, os monstros. Foi alguém em quem eu deveria confiar, que deveria ser uma figura paterna, alguém que deveria me proteger enquanto eu crescia. Quem o via não pensava que ele era um monstro, achava muito bonito da parte dele ter aceitado uma mulher com 5 filhos pequenos, “isso é que é homem!”- eles diziam. Ele jamais se passaria por um monstro, por um estranho, a quem eu fui ensinada a temer.

Aconteceu dentro do meu quarto, o meu lugar sagrado, minha torre. Nunca pude falar, por muito tempo não achei que podia, estava certa, porque ninguém acreditaria, não de verdade.

Contei, mas não tudo, disse que algo aconteceu e se eu continuasse ali poderia ser pior. Meu pai, avós, souberam que algo tinha acontecido, mas ninguém fez nada! Anos depois resolvi falar o que aconteceu, só depois que ele morreu, mas não era um monstro, era um homem, um “pai de família”, um homem que acolheu uma mulher sozinha com 5 filhos pequenos para criar, quem acreditaria que ele seria capaz de tal atrocidade?

Minha mãe se sentiu mal e mesmo quando ela sabia que tinha algo errado, mesmo quando eu não conseguia visitá-la, ela sabia, mas vivia em negação. Quando dei nome aos atos, expliquei, ela acreditou e enfrentou a vergonha e a dor de não ter visto antes.

Outra pessoa que deveria ter me protegido, que eu considerava como melhor amigo, me contou coisas que tinha feito enquanto eu dormia. Quando contei para as pessoas ouvi:

“ah mas ele era só um menino!” "Tem certeza que é verdade, tem certeza que isso aconteceu? Afinal de contas tu estava dormindo!”- ELE ME CONTOU!

Em outra ocasião estava no ônibus, na fileira do fundo, no canto da janela, não conseguia enxergar a pessoa que estava ao meu lado, então um menino me avisou pra sair dali e me tirou do ônibus, disse que quem estava do meu lado era um homem e que ele estava se tocando enquanto me olhava.

Quando cheguei em casa e falei (falei pois não era ninguém conhecido, achei que nesse caso minha palavra valeria mais) e me perguntaram: “mas com que roupa tu estava?”, não entendi como isso era relevante para o que tinha acontecido, mas eu estava de calça jeans, uma blusa não decotada e pensando naquele momento que eu não deveria ter que escolher roupas que me protegessem de abusos, até porque nenhuma delas iria soltar balas, ou laminas para atacar o agressor.

Entendi aos poucos, enquanto tudo ia acontecendo, que por ser mulher temos 99,9% de chances de sofrer algum tipo de assédio ou violência em nossas vidas, quando isso acontece, além de ter que enfrentar esse trauma, precisamos decidir denunciar ou não e aqui não vou falar de coragem, porque nunca foi sobre coragem de reagir e denunciar, mas é sobre a rede de apoio que vai estar ali ou não para te acolher, é sobre os meios financeiros e psicológicos que temos ou não, se o abusador ameaçou sua vida, de seus filhos ou familia, muitos fatores influenciam na não denúncia. Somos julgadas por não denunciar, somos julgadas por denunciar, somos julgadas por falar. Sim, isso pareceu desencorajador e assustador, mas precisamos oferecer, ser essa rede de apoio umas para as outras, para que consigamos cada vez falar mais sobre isso, cada vez mostrar que quem precisa de julgamento é o criminoso, sim quem estupr@ é criminoso e a vítima é VÍTIMA!"

Luiza Bruun
Enviado por Luiza Bruun em 27/06/2022
Código do texto: T7547034
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