Carta Aberta

(Carta feita para Disciplina de Colonialidade na Universidade)

Ao Corpo,

Não sei por onde começar. Talvez seja isso. Começar é cair no equívoco dos pressupostos. Corpo não tem cor. A impressão ótica nos faz criar as ilusões de tonalidades que a cegueira da visão impõe. Fecho os olhos pra tocar as curvas que a geometria desconhece. O que pode um corpo? Quem sabe? Nunca teremos a mínima noção, pois, levados pelos sentidos que não se permitem restringir a um campo de possibilidades reduzidas, repercutimos ecos de afectos e perceptos em modos de existência. A carne negra exposta nos mercados brancos, não pode ser barata, por não pertencer a esse mundo de valores monetários da branquitude. Cara é a brutalidade de uma moeda que expressa a mesma face, a da representação. Chega de dualismos! As impressões às pressas fazem do reverso a negação do mesmo, constituindo a dupla face da moeda. A disciplina, com esse nome desagradável, que é disciplinar, me fez menos homem, menos branco. E isso é bom. Estando inscrito nos signos de opressão, não consigo produzir devires. Aqui eles me dilaceram. Devires: negro, indígena, trans, mulher, bi, não binário, gay, travesti, drag, pan, intersexual, deficiente. A deficiência seria o déficit do majoritário, diferindo até perfurar todo o tecido, produzindo poros nessa superfície lisa. Esse não é o lugar da inclusão, mas da diferença. A diferença não negocia. Que explodam junto as diversidades e suas diferenças de grau. A cada relato, um pouco dessa vergonha que gruda na pele e se alastra, adentrando esse corpo que não é orgânico. Sendo orgânico eu continuaria sendo racista, homofóbico, machista. Fodam-se os White power, masculistas e fascistas! Fodam-se os bolsonaristas! Essa volta à tradição só mostra a necessidade de somar potência ao novo. Refletir apenas torna a repetir. É preciso invadir o espelho, feito Alice. Mas Alice é branca! Quem disse que é ou precisa ser? Troco Alice por Dandara, rompendo o olhar vítreo que não sabe pensar, apenas refletir. Se for pra ver, que seja pelo olhar de Hórus. Que o Jesus branco possa se redimir. Não preciso de religião. Quem precisar de gênesis, procure na ciência ou na religião, e confluirá para um ponto de origem da espécie humana: a África. O corpo não se racializa, apenas sofre os suplícios de quem moraliza os sentidos. Desdobra-se para revelar que é um corpo sem órgãos, que constantemente se torna refém de imagens dogmáticas. Mas o que é o dogma senão uma droga? O ópio é a moral, sempre foi a moral. Alma, espírito, e todas as outras formas de pensar o corpo pelo não corpóreo, não respondem às cores da discriminação. O sangue é o mesmo, vermelho, quando irrompe essa casca feita de estigma. Luz e trevas não passam de perspectivas. O singular não é individual, muito menos propriedade. Se for preciso descarnar, criarão outras formas de discriminar? Descarnem as rostidades e com elas as identidades. As cores nunca foram o problema. Os racistas vestem preto, assim como os fascistas e anarquistas. Qual a cor do leite que escorria dos seios de amas negras? O sangue dos estupros e açoites de escravas era de uma tonalidade diferente de vermelho? A maldade tem cor? O corpo do presidente do Brasil é orgânico. O corpo de Marielle não. Ele não. Ele nunca. Ela sim. Elu sempre. O verbo precisa delirar, fazendo os pronomes ritmarem. Nunca foi questão de rima, mas de ritmo. O grupo produz ritornelos que me fazem vibrar. Não sou mais o mesmo que se inscreveu na disciplina. Fico feliz por isso. Se continuasse sendo, a disciplina faria jus ao nome. A lógica aqui é dos sentidos e por isso esse encontro, apesar das convenções, não se deu por função, mas sim por acontecimento. Ninguém saberia a respeito antes de acontecer, e agora, que estamos rompendo, está longe de um fim.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 30/07/2022
Código do texto: T7571176
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