Carta pro pai.

Oi, pai.

Hoje eu venho aqui, humildemente, lhe pedir perdão. Perdão mesmo, de verdade. Profundo perdão.

Você não sabe racionalmente, pai, mas quantas vezes briguei com você. Briguei feio, em pensamento, depois que você se foi.

Quando você estava aqui eu só lhe obedecia. Mas era um falso obedecer. Eu não entendia o que você queria dizer, afinal, eu teria que ser perfeita, tocar piano, eu teria que usar tailleur, ser executiva... tudo "eu teria que"... mas você não ouviu o meu coração e muito menos os meus desejos. Nem de longe você se prestou a me ouvir, a ouvir os outros filhos seus.

Na verdade, eu não consegui aprender a tocar piano e jamais usei tailleur. Esconjurei o piano e depois... aprendi a tocar pandeiro. Jamais pensei em me tornar executiva e muito menos usar salto alto e meia fina. Odeio os executivos! Centro Empresarial eu passaria longe e iria direto para os museus e galerias de arte. Eu quis ser professora de História, usar calça jeans e voltar prá casa cheia de pó de giz e com o olhar brilhante, muito vivo, porque eu estaria fazendo os meus alunos serem questionadores e não obedientes. Eu não fui aquela "coitada" que você dizia, que eu iria morrer de fome por ser professora. A propósito, quando fiz 50 anos comprei sozinha um apartamento lindo e funcional. Moro nele com orgulho e digo prá mim mesma: não fui uma coitada e também não morri de fome. Ao contrário, fiz algumas mágicas com os meus salários e ajudei muita gente.

Mas eu briguei muito com você em pensamento, pai. Sem entender que você não pensava em felicidade, mas em sobrevivência. Só isso.

Você não contava pra nós do seu passado trágico, da perda do seu pai quando menino pobre naquela cidadezinha de interior. Hoje eu imagino o tamanho da sua insegurança, do seu medo, das suas angústias naqueles tempos... e nos outros tempos também.

E você não conseguiu tempo para pensar em felicidade, não se dedicou a nenhum sonho, nenhum projeto vibrante para a sua vida porque o seu mundo foi pequeno demais diante das suas úlceras que dilaceravam o seu estômago diuturnamente por décadas. Você não teve condições para brilhar.

E o que eu mais queria: era a sua presença e que você fosse muito feliz.

Eu queria sentar no seu colo, falar das minhas dúvidas sem receber conselhos infinitos e totalmente racionais. Eu queria falar da beleza e suavidade da primavera e dizer que eu tinha medo das pessoas quando você frisava tantas vezes que “São Paulo era uma selva”. Eu discordava em pensamento quando você dizia que “a vida é como os outros querem e não como a gente quer”. E eu achava que deveríamos ser donos das nossas vidas e construir um projeto para elas. Achava que deveríamos ter livre arbítrio. Eu queria que você me ouvisse e me entendesse. Dar uma volta no quarteirão, tomar um sorvete, levar um vasinho de violeta prá mãe, ir ao cinema uma vez por ano. Eu lhe queria, pai. A sua presença inteira.

Então eu briguei com você em pensamento, pai. Foram muitas vezes.

Mas quero que me perdoe. Me perdoe, pai, me perdoe. Eu lhe incomodei muitas vezes onde hoje você se encontra. Mas eu não queria lhe atormentar. Eu queria apenas lhe dizer: senti uma falta imensa, gigantesca de você quando estava por aqui. Sofri junto todas as suas dores. Chorei escondida inúmeras vezes. Ainda hoje falo muito de você, do seu calvário por essa vida.

Quando eu lhe encontrar, pai, me abrace. Mas abrace perdoando. Abrace como aquela vez, na praça da catedral de Apucarana. Eu lhe abracei de igual para igual, sem medo, como dois adultos. Foi a única vez que nos abraçamos verdadeiramente. Eu não sabia, mas estávamos nos despedindo. Dias depois você se foi...

Eu briguei com você, pai, em pensamento, pelo tanto que lhe amei.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 14/08/2022
Reeditado em 15/08/2022
Código do texto: T7582225
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