Cartas Perdidas de Ocelot I - 7

Caro tio Donan,

As últimas semanas foram maravilhosas. Dulcélia aparenta estar plenamente recuperada. Acredito que estamos superando bem a nossa perda, cientes de que tudo que ocorreu não foi em vão. Estamos mais próximos do que nunca e felizes em saber que as coisas vão bem por aí também.

Escutar conflitos na fronteira também tem se tornado algo raro. Não sei o que se passa entre os principados, mas a guerra parece estar esfriando. Por isso, e também pela melhora de minha amada, imaginei que seria uma boa ideia fazermos um passeio como há muito não fazíamos.

Em um dia de céu claro, saímos cedo pela manhã. Os primeiros ventos da primavera sopravam uma brisa com aroma de flores. Fomos à clareira no bosque, a qual sempre gostávamos de visitar e lá montamos um piquenique. Os raios de sol que banhavam o rosto de Dulcélia revelavam uma felicidade que sempre me inspirou e me fazia falta. Mas infelizmente essa paz não durou muito.

Quando chegamos em casa e eu abri a porta, me deparei com toda a mobília revirada, havia destroços por todo lugar. A própria porta, reparei depois, havia sido arrombada e as janelas haviam sido quebradas. Antes mesmo de pedir a Dulcélia para recuar, fui surpreendido com um soco no rosto que me levou ao chão. Só voltei a acordar quando alguém jogou água fria em mim.

Haviam me amarrado sentado numa cadeira no meio do que havia sobrado da sala. Vi na minha frente um homem velho, também sentado, mas ao perguntar quem era ele, alguém desferiu um tapa em meu rosto. Me lembro que deveria haver cinco ou seis soldados na sala, Dulcélia estava presa em um canto e o homem à minha frente era o próprio príncipe Omdoria III, me disseram. Aqueles homens que destruíram meu lar eram meus conterrâneos.

Ele usava vestes elegantes, tinha cabelo e barba bem cuidados e, apesar de velho, tinha uma expressão voraz. Primeiro ele disse estar um “tanto decepcionado”, pois pelas histórias que ouviu sobre o “benfeitor Yanshuriano”, imaginou que eu fosse mais “inspirador” pessoalmente.

Sem muita conversa fiada, tratou logo de me perguntar o motivo que me levou a ajudar um inimigo mortal a sobreviver. Neste momento me arrependo da resposta que dei, pois poderia ter dado fim a vida de Dulcélia e a minha devido as minhas palavras. Mas naquela situação fui compelido a ser atrevido. Eu disse que o “inimigo” só era meu porque antes o próprio Omdória transformou Yanshur em inimigo daquele soldado.

Além disso, falei que só estava fazendo o que fui ensinado por meu pai a fazer. Ele, então, perguntou porque eu achava que meu pai havia me ensinado isso. Eu respondi que não sabia, mas vi isso o trazer paz até o fim de seus dias. Omdoria riu e debochou de meu pai, dizendo que a bondade havia ido para o túmulo com ele. Eu retruquei, afirmando que pelo menos ele não foi um governante que seria desprezado até depois da morte por todo um povo. Em seguida o soldado ao meu lado me deu outro tapa.

Antes que o líder de Yanshur falasse mais algo eu disse que continuar com a guerra não traria o filho dele de volta, ao invés disso, deixaria milhares de filhos sem pais. Ele arregalou os olhos, levantou-se e foi andando até a porta. Antes de ir embora ele me avisou que eu estava proibido de sair de minhas terras e haveria soldados circundando a região para garantir isso.

Mais tarde, durante a noite, Dulcélia cuidava de meus ferimentos. Pedi desculpas por não termos ido embora antes disso acontecer. Ela me beijou, chorou e abraçou-me. Caro tio, não sei mais o que esperar após isso. O milagre dessa vez foi o fato de minha esposa e eu não termos sido mortos sob acusação de “traição”.

Com carinho,

Seu sobrinho, Ormano

M Henrique
Enviado por M Henrique em 01/05/2024
Código do texto: T8054275
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.