Nunca te vi, sempre te amei

Recebi numa manhã um e-mail seu: “ Como não consigo te entender direito, resolvi ir a fundo nos seus textos para conhecer a lógica do seu pensamento ( ....) Continuo sem te entender, mas te amo muito.”

Lembrei-me de um filme antigo, que dá título a esta carta, com Anne Bancroft e Anthony Hopkins. Uma escritora americana mal humorada envia uma carta a uma livraria de Londres, solicitando obras clássicas raras. O vendedor inglês atende a seu pedido, iniciando uma troca de cartas comovente entre os dois continentes por mais de vinte anos. A aspereza da mulher contrasta com o comportamento britânico do vendedor, mas o amor aos livros forma entre eles um elo que se intensifica com o passar do tempo. As cartas íntimas e detalhadas descrevem sonhos, sofrimentos, esperanças e alegrias que nos remetem à reflexão pessoal. Os dois desenvolvem uma amizade notável e duradoura, apesar de nunca terem a oportunidade de se conhecer pessoalmente.

Pode ser que conosco tenha acontecido isso: apesar de nos olharmos com freqüência há tantos anos, nunca nos vimos de verdade. Como num quebra-cabeças, as peças estão lá, embaralhadas, aguardando o momento de decidirmos montar o quadro das nossas vidas.

Eu também nunca te entendi, mas sempre te admirei. Talvez por sermos tão diferentes : você o furacão, eu a brisa; você a ação, eu o pensamento; você o Tico, eu o Teco; você o exterior, eu o interior; você a razão, eu a emoção; você a matéria, eu o espírito; você a luz, eu a sombra; você, a ousadia, eu a tradição, você a palavra, eu a escrita; você o luxo, eu o lixo (?!); você a resposta, eu o enigma; você o enigma, eu a resposta...

Quando éramos meninas, íamos a pé para a escola. Como o caminho era longo ( ou nossos passos eram pequenos demais para vencer os 5 quilômetros que separavam os dois destinos), inventávamos histórias para passar o tempo. Houve a época da mitologia: eu, mais velha, te contava histórias da mitologia greco-romana. Como Sherazade, parava sempre numa parte que te despertasse o interesse para o próximo capítulo...

E é da mitologia, agora egípcia, que eu tomo emprestada a simbologia para o nosso relacionamento tão ambíguo e complicado. Como Ísis e Osíris, amantes e criadores do Universo, nossas personalidades são complementares. Osíris foi morto e partido em partes, espalhadas pelo mundo, pelo irmão Seth, invejoso pelo relacionamento dos dois irmãos do Bem. Ísis passou a vida percorrendo o mundo, recolhendo pedaço por pedaço do seu amado até tê-lo por inteiro novamente. Ao recriar o irmão, Ísis, com um beijo ressuscitou-o com o sopro da vida. Seth é o nosso amor próprio, a nossa disputa pelo amor dos pais, o nosso descompromisso de preservar os vínculos fraternos. Como Ísis, você tenta ajuntar as minhas diferentes partes através dos textos que escrevo.

Já está tudo unido, só falta o ato final. Dispenso o beijo, o sopro da vida pode vir da intenção dos nossos corações.

Não precisamos nos decifrar. Podemos nos aceitar como somos, cada qual com seus mistérios. Prometi à nossa mãe cuidar de você e sei que, juntas, podemos cumprir a promessa. Somos companheiras, irmãs, mulheres forjadas na fibra.

Sempre te amei muito. E tenho muita fé em nós.

Setembro/07

Revisado em 10/01/08

Maria Paula Alvim
Enviado por Maria Paula Alvim em 10/01/2008
Reeditado em 10/01/2008
Código do texto: T811010
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