Carta ao meu amor

Praia do Anil, 12 de janeiro de 2008.

MEU AMOR!

Daqui a pouco faremos quarenta e sete anos que nos conhecemos. Era de tarde. Início de março. Sexta-feira. Após a notícia de uma reprovação em Latim, a média era sete, eu só conseguira seis, vírgula seis.

Meu pai pagara o colégio com sacrifício. Saí de uniforme à procura de um emprego. Entrei em todas as lojas da Rua Oswaldo Cruz, onde se concentrava a área comercial. Nada de vaga para uma menina de dezesseis anos, vestida com o uniforme escolar. Desci a Avenida Magalhães de Almeida, entre a Rua Grande e Rua de Santana. Entrei na única loja de roupas daquele percurso, Casa Cruzeiro, o restante do comércio não me parecia precisar de empregados. Também ali não precisavam de ninguém.

Início da Rua de Santana. Entrei em mais duas lojas e nada. Parei na calçada, alonguei o olhar na direção interna da rua. Bem ao meu lado, estava a Casa Xavier. Fronteiriço a ela mais duas lojas. Dei alguns passos, já meio desanimada. Vi funcionárias arrumando mercadorias nos tabuleiros. Eu estava com a pasta de livros no braço esquerdo e um lápis com uma borracha amarrada na ponta, por uma fita, na mão direita. Tivera aula de desenho. Anotava no caderno nomes das lojas visitadas.

Entrei observando as plaquetas com os preços, nos tabuleiros. Bati com a borracha em algumas, achando o método interessante. Perguntei a uma das funcionárias se ali tinha vaga para uma balconista. Ela perguntou para quem trabalhar? Disse que era para mim. Ela riu. - Assim de uniforme escolar? Respondi que saíra do colégio para procurar emprego. Ela riu de novo, com simpatia, e apontando em direção ao caixa, disse que fosse falar com você. Diante daquele homem alto, forte e avermelhado, fiquei um pouco tímida. Então você me perguntou se queria alguma coisa. Disse que estava procurando um emprego. A reação foi a mesma da funcionária: um belo sorriso de simpatia. Você me perguntara por que uma menina tão simpática, com uniforme escolar, queria trabalhar? Contei meu problema na escola e você perguntou quantos anos eu tinha? Eu disse que faria dezesseis em maio. Com aquele seu sorriso maravilhoso, me dizia que precisava estudar. Eu retruquei que continuaria a estudar a noite, mas precisava mesmo trabalhar. Você disse que me daria uma chance de fazer um período de experiência. Meu coração ficou aos pulos. Voltei ao colégio e transferi minha matrícula para a noite. Comecei a trabalhar na terça-feira da semana seguinte.

Trabalhei no balcão vendendo roupas, rendas, fitas etc. Antes de terminar o período de experiência passei para o caixa e quatro meses depois para o escritório. Você me dizia que eu era bonita e muito esperta e que precisava da minha habilidade no escritório. No final daquele ano você me deu a chave para que eu não ficasse à porta esperando a loja abrir. Eu sempre era a primeira a chegar. Até então não percebera nada diferente no seu tratamento para comigo. Acreditava que era uma boa funcionária e por isso fora ascendendo no emprego.

Na mudança da Casa Xavier para a loja nova, fiquei envaidecida com a sua mesa ao lado da minha no escritório. Mas, foi apenas coisa de adolescente. Naquela noite quando bati com a cabeça na viga do escritório e você me levou para o pronto socorro, senti um tremor em seu corpo ao se aproximar do meu. Como se fora uma pena, levou-me no colo até o táxi. Ao apoiar-me com o corpo para dar os pontos em minha cabeça, senti seu coração aos pulos. Ao me enlaçar com o braço para me levar até o carro, eu estava meio zonza, você estremeceu. Ao apoiar sua mão em minha perna na parte traseira do carro, senti embargo na sua voz. Mas tudo de maneira tão delicada que só eu percebi. Você me levou para casa. No outro dia cedinho lá estava uma funcionária para saber como passei a noite. Só então comecei a perceber, que não era só preocupação com uma funcionária desajeitada. Passei aquele dia em casa e de tardinha, lá estava a funcionária buscando notícia minha para o patrão.

No outro dia ao chegar à loja percebi um brilho diferente em seus olhos e fiquei um pouco assustada. Afinal você era meu patrão e eu não sabia muito de você. Passei a chegar mais tarde ao trabalho o que o surpreendeu, pois durante mais de um ano fora pontual, sendo a primeira a chegar. Dei uma desculpa qualquer, mas o meu coração já acelerava o ritmo quando o encontrava.

Fui passar a Semana Santa em casa de meus pais, no interior. Na volta ao trabalho, na quinta-feira, chovia torrencialmente. Mesmo assim, vesti minha capa de chuva, coloquei a galocha e enfrentei o temporal para chegar à loja mais cedo, antes dos outros funcionários. Você lembra sua reação quando me viu? Ah! Meu querido, quando o vi correndo ao meu encontro, na porta, quase perdi a respiração.

Você me tomou nos braços, ensopada da chuva. Ajudou-me a tirar a capa e a galocha. Apanhou meias na gaveta para me aquecer o pés e me beijou de uma maneira tão sublime que ainda hoje, ao escrever esta carta, sinto-o, acelerando meu coração. Lamento não tê-lo aqui para abraçá-lo e reviver aquele maravilhoso momento. Naquela ocasião fui pedida em casamento. Tivemos nossos filhos, um sonho da sua vida. Hoje temos cinco netos lindos e inteligentes. Só não tenho você, que me deixou há vinte e sete anos, foi para outra dimensão, mas neste momento sinto você aqui.

Sua sempre

Benedita Azevedo

Benedita Azevedo
Enviado por Benedita Azevedo em 20/01/2008
Reeditado em 26/01/2009
Código do texto: T825541