Entre ti e mim

Querida amiga,

Hoje eu te encontrei no ônibus, assim, por acaso, como quem encontra um filme bom que estivesse perdido na memória, em meio a músicas e planos eclipsados pelo tempo. Eu vinha meio distraído — sabe como é, né?, sempre tive um pé na terra e outro na lua — e nem percebi que a cobradora me deu o troco errado.

Quando ia passando pelo corredor, em direção aos assentos de trás, notei teu rosto. Estava diferente, mas eu nem me prendi a isso. Uma senhora se levantou na minha frente, e eu tive de desviar a atenção para não pisar no pé dela ou ter meu pé pisado. Isso foi o bastante para que eu me perdesse novamente nesse universo de poltronas ocupadas e rostos semidescobertos. Daria pra fazer uma metalinguagem de "Operários", de Tarsila do Amaral, utilizando sua retórica espiralada para te dizer as mesmas coisas que sempre disse — dessa vez, com o meio tom desse rio que corre acabrunhado ao nosso lado. Talvez coincidência, mas ele segue nossa mesma direção.

Mas aí pensei que eu poderia estar com sono. E eu sei que a letargia causa essas coisas. Arte, poesia, verossimilhança, catarse; você riria de tudo isso, como esse sinal verde da ponte que nos convida a imaginar uma vida sempre em frente, cada um em seu universo. Engraçado pensar isso, porque nesse momento tive certeza de que as velhas ruas nos levam ao mesmo lugar, onde a vida é séria, e a guerra, dura — como Raul já nos dizia.

Quando voltei a mim, percebi que tinha passado do teu assento. Estava vazio ao lado, e não sei por que não me sentei pra bater um papo leve, desses que só se conversa de manhã, do tipo “E aí, que é que tu andas fazendo?”, “E os projetos pro futuro?”. Fatalmente tentaríamos falar das nossas coisas, sem sucesso. Eu diria que prefiro sempre viver minha loucura, você pediria licença delicadamente pra ir ao banheiro, lá desbotando aquele riso que eu não vi, porque hoje é segunda, e nas segundas tudo é muito chato. E, depois das glórias e do inferno torto, voltaríamos ao ponto inicial — que, aliás (e contraditoriamente), foi o ponto final.

Mergulhado nesses pensamentos, de repente pensei nas coisas que não são ditas. Um bom-dia que é engolido bem na hora H, ou um simples “Oi, como vai?” que fica suspenso na cordinha do ônibus. Percebi que você a tinha puxado, como se pedisse educadamente para sair dali e despir dos olhos essa paisagem ridícula, cheia de urbe e caminhos desencontrados. Olhei em direção à porta e só vi uma sombra que descia e se misturava à paisagem cansada das ruas — uma floricultura junto de um bar. Queria tomar uma cerveja contigo agora, mas era cedo do dia e tarde pra essas coisas que não são ditas. De qualquer forma, fico feliz que tudo esteja bem. E que o ônibus não tenha atrasado tanto.