CAUSOS DA BOLEIA – NEM TUDO QUE NÃO ESTÁ CERTO ESTÁ ERRADO, ÀS VEZES ESTÁ TORTO

CAUSOS DA BOLEIA – NEM TUDO QUE NÃO ESTÁ CERTO ESTÁ ERRADO, ÀS VEZES ESTÁ TORTO

Eu estava examinando os pneus enquanto abastecia o caminhão, quando eles se aproximaram de mim. Eram dois rapazes vestidos com jeans, usavam bonés e óculos escuros e carregavam mochilas nas costas.

- O senhor pode dar uma carona pra gente? – Perguntou um deles.

- Só depois que vocês tirarem os óculos e se identificarem. Eu não gosto de falar com pessoas que escondem os olhos – eu respondi.

Eles prontamente tiraram os óculos.

- Meu nome é Edir - disse um deles.

- E o meu é Waldir – disse o outro.

- Nós trabalhamos com turismo e estamos viajando de carona – mostraram-me os respectivos documentos.

- Não precisavam mostrar os documentos. Bastava tirarem os óculos escuros, porque eu não gosto de falar com quem esconde os olhos. Vocês estão querendo ir pra onde?

- Qualquer lugar, a gente não tem destino certo. Somos livres, leves e soltos.

Achei meio esquisito o jeitinho de ele falar, principalmente com a utilização excessiva das mãos. Fiquei desconfiado.

- Eu estou voltando pro Rio de Janeiro.

- Tá legal! Nós podemos ir contigo, então? A gente escolhe um local pra ficar no caminho.

- Sem problemas, então. Às vezes a estrada fica muito monótona e é bom ter companhia pra conversar um pouco. Eu só vou terminar de abastecer, e fazer um lanche. Depois, poderemos ir embora.

- Pra nós tá cem por cento.

- O meu nome é Rui Barbosa, mas podem me chamar só de Rui.

- Obrigado Rui! A gente vai aproveitar pra lanchar também.

Enquanto seguíamos pela estrada, que estava bem movimentada, porque era sábado e a maioria dos motoristas de fim de semana vai passear, os meus companheiros de viagem falavam muito, fofocando a respeito das pessoas que conheceram na viagem. Acho que eles se distraíram e soltaram a franga, ou não estavam mais preocupados em não demonstrar que não gostavam muito de mulher, confirmando a minha desconfiança a partir da gesticulação.

- Você é da onde Rui? - Perguntou o Edir.

- Eu sou do Rio.

- Nós servimos lá no Rio, enquanto a gente era marinheiro – disse o Waldir.

- É. Foi lá que nos conhecemos, o maior barato!

- Vocês são gays?

- Claro, né Rui! Vai dizer que você não tinha reparado?

- Pra ser sincero eu estava desconfiado, depois eu passei a ter quase certeza, agora que você confirmou, eu fico mais tranquilo.

- Você tem alguma coisa contra gay?

- Claro que não! Não tenho nada com isso. Mas é bem melhor saber, não fico com medo de cometer gafes.

- Você é casado? – Perguntou o Edir.

- Não. Estou divorciado e gosto muito de mulher.

- Não se preocupe Rui. Não vamos dar em cima de você. Nós somos um casal e respeitamos muito um ao outro. Vivemos uma relação estável há mais de dois anos, assim a gente se protege dessas doenças transmissíveis sexualmente. A gente se ama.

- Nós já moramos juntos desde o tempo da Escola da Marinha – Falou o Waldir, segurando a mão do Edir num gesto de carinho. O Código Civil não proíbe, simplesmente não prevê o casamento entre pessoas do mesmo sexo. A nossa união pode ser classificada como estável, por isso podemos ser uma família e até adotar uma criança. Existe, inclusive, a possibilidade de mudarmos de sexo e, pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, com base na aparência física, até podemos trocar os documentos, se for o caso.

- Mas a questão da sexualidade não prejudica o relacionamento no quartel? – Eu perguntei.

- Sabe, Rui, apesar de tudo, os homossexuais, geralmente, são bem aceitos. São vistos como bons profissionais, dedicados e eficientes; alguns até preferem ter um na equipe. É claro que, como em todo lugar, tem sempre aquele que não gosta e faz tudo pra prejudicar.

Confesso que eu estava meio sem graça. Apesar de não desconhecer a situação, lógico, hoje em dia a relação homossexual é fartamente divulgada na imprensa por todos os meios. Mas, assim, na minha presença, só nós três ali na boleia, dois homens se acariciando e dizendo que se amavam, nunca tinha acontecido. O que é que eu poderia fazer? Nada, não é mesmo? Então eu procurei ser o mais natural possível, até para descontrair e não parecer antiquado.

- É muito difícil conviver com os nossos conflitos pessoais. Uma mulher no corpo de homem. Era assim que eu me sentia – começou a falar o Edir. Desde pequena – ele falou pequena - eu gostava de usar as roupas da minha irmã, quando não tinha ninguém em casa. Langerie dela eu usava sempre e me sentia muito bem, achava confortável. Na adolescência eu percebi que tinha mais atração por homens que por mulheres e eu vivia sempre em conflito. Ninguém vira gay. A pessoa já nasce assim, só que, às vezes, demora pra se dar conta disso. No quartel, quando íamos todos tomar banho, aqueles homens todos pelados, os corpos jovens... Existe coisa melhor pra um homossexual do que tomar banho com um monte de homens pelados e sarados? Eu tinha que me conter e aparentar naturalidade, mas você deve imaginar o que ia pela minha cabeça... Meu Deus, eu ficava louco. Uma vez, eles estavam brincando... Aquelas brincadeiras de homem, sabe? Sacaneando uns aos outros. O Waldir passou a mão em mim e como não tenho muita experiência nessas brincadeiras, quando fui revidar, passei a mão no lugar errado. Você deve imaginar aonde.

- Eu adorei! – disse o Waldir.

- Eu fui à lua e voltei – falou o Edir. Até fiquei com a mão lá mais tempo que o normal, sem saber o que fazer, cheio de vergonha pela situação inesperada.

- Depois daquele dia a gente passou a andar sempre juntos – emendou o Waldir. Mas a gente começou a namorar mesmo, quando estávamos numa viagem e eu passei mal. Estava com uma febre muito alta e o Edir ficou do meu lado o tempo todo, verificando a minha temperatura e me dando remédio.

- Numa hora ele acordou, – começou o Edir – viu que eu estava deitado ao lado dele, pegou a minha mão e falou: “Vai descansar, eu acho que já estou melhorando, obrigado”. Aí nós não resistimos e acabamos fazendo amor pela primeira vez...

- Troca-troca? – Eu perguntei, e me arrependi em seguida.

- Você é muito curioso Rui! – Disse o Edir.

- E indiscreto. E troca-troca é um termo muito chulo. Nós fizemos foi amor, meu filho. Sexo com paixão. Falou o Waldir.

- Desculpem-me, saiu sem querer.

- Foi maravilhoso, nós nos realizamos e ficamos com um sentimento de liberdade, uma felicidade muito grande. Então passamos a viver juntos. Todos os nossos companheiros sabiam do relacionamento da gente. Até mesmo quando rolavam as festinhas dentro do navio que os marinheiros fazem antes de o navio atracar nos portos, o pessoal respeitava a gente e não ficava zoando. Os homens iam procurar mulher na terra, nos bordeis, e a gente tomava outro rumo. Depois, demos baixa na Marinha e estamos trabalhando em turismo, sempre juntos. Por isso a gente está aqui.

- Quando eu servi à Aeronáutica – eu falei –, tinha um sargento que também era boiola. Desculpem-me, é maneira de falar – eu disse quando os dois me olharam com ar de censura. Tinha um sargento que era gay. O cara queria a todo custo que eu fosse com ele, vocês sabem. Vivia dando em cima de mim. Era taifeiro. Eu dei o fora nele e ele ameaçou me prender inventando insubordinação e desacato. Então eu disse pra ele que se ele fizesse aquilo eu iria denunciá-lo. Aí ele botou o galho dentro e ficou na dele, mas me perseguiu até eu dar baixa, o descarado.

- Eu também morava no Rio – disse o Edir -, mas quando o meu pai soube da minha preferência sexual, me botou pra fora de casa. A sorte é que eu já estava na Marinha. Meu pai é metido a machão, coitado. Às vezes eu fico com pena dele. Ele deve ter sofrido muito. Até entendo. Quantas vezes deve ter falado com os amigos sobre o garotão que tinha em casa, naturalmente que ia ser o maior garanhão... de repente, a decepção. Mas o que é que eu posso fazer, eu tenho que procurar ser feliz, seguir a minha natureza e, com certeza, não é gostar de mulher. Nunca mais apareci em casa. De vez em quando, eu mando uma carta pra minha mãe dando notícias. O velho nem quer saber de mim. Diz que pra ele eu morri.

- Eu, por enquanto, não tive esses problemas – disse o Waldir. Meu pai é falecido e minha mãe nem sabe que eu sou gay. Quando eu vou visitá-la, o Edir não vai comigo, vou sozinho. Assim ela não fica sabendo. Pior que sempre pergunta quando eu vou dar um netinho pra ela. Eu fico rindo e falo que ainda não estou pensando nisso, porque não encontrei a mulher certa. Mal sabe ela que nunca vou procurar. Mas ela tem outros filhos que podem realizar o seu sonho de ser avó, eu digo pra ela. Espero que um dia eu possa aparecer lá na casa dela com o Edir pra ela conhecer. Quem sabe?

- Por enquanto, o que a gente quer mesmo é ser feliz, estar de bem com a vida – disse o Edir. Eu estou cuidando do meu corpo e o Waldir também, tentando desmasculinizar um pouco usando hormônio feminino. A feminização por hormônios e o uso moderado de silicone líquido pra modelar, arredonda as formas, principalmente os seios, que já estão começando a crescer, e não afeta a ereção, porque nós, eu e o Waldir, precisamos disso, né? Senão, como é que vai ser? Apesar de que pode provocar esterilidade, mas isso, logicamente, não nos incomoda.

Eu, novamente, fiquei muito sem graça com a simplicidade que eles estavam falando da sexualidade deles. Principalmente porque, para mim, alguma coisa era novidade. Aí eu fiquei imaginando um monte de coisas acerca da vida deles. Deve ser bem diferente e difícil, principalmente no convívio com outras pessoas. Acho até que a conversa que eles tiveram comigo pode ser uma maneira de desabafarem. Olhei para a fotografia da minha namorada que está no painel, bateu uma saudade danada e cresceu uma vontade grande de pegá-la nos braços, levar para a cama e ficar brincando por um longo tempo.

Quando parei novamente, já estava anoitecendo. Estávamos em Vitória, no Espírito Santo. Naquela noite, nós jantamos juntos e nos despedimos. No dia seguinte tomamos rumos diferentes.