Ironia de uma Metamorfose

Encontrava-se na sala de leitura. Parado. Sentado perto da janela. Os minutos se faziam horas, enquanto flutuava em pensamentos perturbadores. “Aqui vou, novamente aprofundar-me em anseios sem explicações”. Mais uma vez um mergulho em suas perguntas sem respostas. Olhava pela janela, a chuva fina e leve deixava a cidade ainda mais gelada. Congelava ainda mais a sensação sufocante que sentia ao se dar conta de que teria, mais uma vez, que sorrir sem querer. Era evidente que isso não lhe agradava, mas assim era a sua vida. Tinha uma família, tinha um punhado de pessoas que sabiam o seu nome e a cor dos seus cabelos, isso significava alguma coisa. “Mas o que?” Isso, ele não sabia responder. Suas dúvidas, sempre elas, a atormentar sua mente jovem, pesada do fardo que lhe impuseram. Constatou primeiro, que não era feliz; que talvez nunca tivesse sentido o sabor doce e puro da felicidade. Tinha o carro, um apartamento novo, posses, um cachorro, até um lustre bonito na sala de jantar. Tanta coisa pra alguém de vinte e poucos anos. “Mas de que adianta?”. A resposta não veio. Constatou, então, que nunca havia amado. Teve sim seus encantos. Apaixonou-se por algumas silhuetas bem contornadas, por alguns lábios vermelhos, e até por um par de olhos azuis; mas amor, daqueles que deixam o homem completamente fora de si e que viram crianças mimadas e possessivas defendendo seu brinquedo predileto, não. Este sentimento, ele não teve. “E porque senti-lo?”. Refletiu, e mais uma vez sua mente ficou nebulosa para lhe dar alguma resposta. Pensou, então, em seu emprego no escritório de contabilidade de uma grande empresa multinacional. Era jovem, ainda sem muita experiência, mas os poucos anos cursados na faculdade tradicional de finanças garantiram a ele um lugar importante, abaixo apenas do chefe. Este, um austero alemão, dono de uma aparência tão gélida, quanto à chuva suave que caía naquela manhã de inverno. Sempre abordou com indignação a forma apática que seu chefe conduzia a vida dos empregados, porém nunca havia levantado essa indignação a ninguém da companhia. Não tinha coragem para fazer ecoar sua reprovação. Era tido como um empregado exemplar, determinado e obediente. Sabia que muitas vezes sentia-se um cão adestrado, mas este pensamento logo fugia da sua cabeça quando lembrava do alto salário que recebia e do orgulho de todos que o cercavam. “Dinheiro, orgulho, nunca me trouxeram as respostas q’eu procuro”. Enquanto divagava em seus pensamentos oprimidos, confuso em suas perguntas e sufocado pela angústia, algo lhe chamou a atenção. No canto esquerdo da sala onde se encontrava, ao fundo, perto da estante de vidro, onde seu pai guardava sua coleção de discos antigos de música clássica, avistou um bicho fastio; mexendo suas anteninhas de um lado pro outro, como quem percebe que foi descoberto. “Que asco!”.

Seu primeiro pensamento foi o de exterminar aquele ser grotesco, pisoteá-lo e esmagá-lo com toda a sua fúria. Queria de alguma forma, descarregar todo o rancor das suas dúvidas em cima da couraça frágil daquele artrópode. Ah, como iria se sentir poderoso, forte, provando que a sua espécie era dominante comparada a defesa, quase inexistente naquela situação, do inseto miúdo. Como uma bala de revólver mirada em seu alvo, seus pés o levaram. “Não quero saber, este bicho, neste instante, há de morrer!” Aproximou-se com cautela para que este não percebesse e escapasse. Em alguma coisa ele deveria ser eficiente, já que para todo o resto ele não fazia mais que a obrigação que lhe foi imposta. Ser um filho obediente, um aluno aplicado e um empregado exemplar não passava de obrigações que ele fora incumbido de cumprir. A sociedade a qual fazia parte impôs, desde seu nascimento, os caminhos que ele deveria trilhar se quisesse ser um “cidadão de bem”. Como se ele fosse um turista que, em terras estrangeiras, necessita de um mapa para guiar-se. Pelo menos para exterminar aquele inseto, que para si tinha uma aparência grotesca, não havia protocolos a seguir. Para esmagar insetos indefesos, sem alguma racionalidade humana; que saem do seu habitat natural e partem em desafios de vida ou morte em busca de alimento, não necessitava habilidades intelectuais. Era somente esperar o instante certo, mirar o jornal dobrado ao meio, e pronto! Enviaria aquele bicho, que lhe causava repulsa, para o lugar dele; o fétido e poluído esgoto daquela metrópole fria. Ele tinha um plano, e estava obstinado a cumprí-lo de qualquer maneira. Mesmo que o bicho implorasse, lançasse olhares de piedade ou até mesmo dissesse que estava ali somente de passagem; não importava, em seu pensamento a vida daquele ser repugnante havia chegado ao fim. Encontrou-se na ponta dos pés, perto do móvel de vidro e já ia lançar o golpe fatal; quando esbarrou na estante e um livro foi de encontro ao chão. Ficou parado, com o olhar fixado no exemplar que havia caído. Ele não conseguia mover-se, seus pés não o obedeciam, suas mãos, trêmulas, deixaram cair o jornal. Sentiu o coração palpitar. Não conseguia entender a situação em que se encontrava. Como se fosse um muro erguido, invisível, o livro o separava do futuro moribundo. Ele não sabia se ria ou se sucumbia ao acaso. O exemplar que, a pouco, caíra; havia sido escrito por um judeu, nascido e falecido na Europa. Um homem tão atormentado, quanto ele. “Meu Deus, porque justamente este livro?” Lembrou-se que não acreditava em divindades. Há muito havia perdido a fé nos homens. Nem lembrava do dia que perdera a fé em si. A Metamorfose, por Franz Kafka. Esta era a trágica ironia que estava diante de seus olhos. A sala gélida, a chuva melancólica, o artrópode, Kafka e ele. Como na história trágica narrada pelo autor do livro, ele se encontrou diante de uma revelação. Seus olhos tomaram outra direção. Fitou o inseto que permanecia com o corpo imóvel, vez ou outra suas antenas finas e frágeis se moviam. Fitou-o longamente, como quem compreendesse, finalmente, o seu estado de espírito. Era ele, em cima da estante de vidro, caído no chão, dentro das páginas velhas e amareladas de uma edição antiga. Sentiu-se mal. As mãos estavam mais trêmulas que dantes, suavam. O corpo inteiro sucumbiu ao suor. Mas ele não sentia calor, ao contrário, sentiu o gelo do ártico ultrapassando a epiderme. A respiração se fazia ofegante. Já não conseguia mais comandar seus pulmões, que parecia não obedecer a sua ordem. Pôs a mão em seu peito. Uma dor imensa invadia todo o interior de seu tórax. E num lapso...ele foi ao chão. Cedeu a uma angustiante e sufocante sensação de impotência. Não conseguia pensar em nada, a não ser naquela dor. Tomou consciência de que, aquele, era o fim. O mesmo fim tantas vezes esperado, planejado e nunca colocado em prática. Sempre achou que a morte seria um alívio, mas pensava ser egoísmo tirá-la com as próprias mãos. Pensou na família, sentiu um tanto de tristeza, e algumas lágrimas caíram sobre seu rosto pálido. Ao lembrar que em sua vida nunca fizera nada que fosse de sua vontade chorou, assim como uma criança que se perde da mãe. Pensou nesta, que conheceu pequeno e nunca mais a viu. Queria tê-la visto, ter contado todos os anseios, quem sabe ela não o compreenderia? Pensou que se saísse daquela situação faria da sua vida, algo diferente. Tomaria coragem e ia-se para bem longe, ao encontro de suas vontades. “Quem sabe a Literatura?” Sempre foi um assíduo apaixonado pela escrita dos grandes autores, mas nunca aceitou que poderia haver em si habilidades suficientes para descrever suas temerosas angústias. Sentiu-se, o pouco que viveu a vida, um ser escasso de habilidades. Condicionou-se às imposições feitas pelo meio que vivia, achando que esse era o seu verdadeiro destino; quando acreditava em destino. Mas agora ele faria diferente. Jurou do fundo de seu espírito quase desfalecido. “Mas qual o propósito desses pensamentos agora?” Finalmente, seus anseios foram explicados. Todas as perguntas que o atormentaram todo aquele tempo, foram respondidas. Ele aceitou a libertação. Aboliu-se desta vida. Esboçou um último sorriso, ao ver o inseto diante de si. Não fechou os olhos, quis aquela última lembrança de sua passagem pela terra dos homens. Juntou toda a sua força, alcançou o exemplar de Kafka, suspirou e foi-se. Passado alguns minutos, a família finalmente deu falta dele, foram todos procurá-lo. Seu pai o encontrou na sala de leitura, estirado ao chão, com uma das mãos estendidas em cima do livro. Manteve-se calmo, como o de costume. Parece que pressentia que, um dia, aquilo ia acontecer. Apenas sentou-se ao lado do filho, segurou uma de suas mãos e com a outra pegou o livro. Este se encontrava com a página aberta, que dizia assim: “Quando certa manhã Gregor Samsa despertou, depois de uma noite mal dormida, achou-se em sua cama metamorfoseado em um monstruoso inseto...”

Fe Jacomassi

(jun/08)

(Premiado: Grandes Escritores do sec XX apresenta: Franz Kafka, releituras. Literatura - Puc/SP)