A Farsa

Todas às vezes que o marido viajava, Marilda, imediatamente, avisava o amante e marcavam um encontro em sua casa. À noite, ele vinha, fazia o sinal combinado, que consistia em arranhar a porta como se fosse um gato. Ela, que já o esperava, ansiosa e excitada, corria mais que depressa a abrir-lhe a porta, antes que os olhares bisbilhoteiros da vizinhança o vissem entrar e as más línguas a denunciassem. Fechava a janela e as cortinas. E , sem fazer barulho, os dois pombinhos passavam a noite em delírio, aproveitando os momentos ardentes e inesquecíveis de prazer em um nunca acabar de beijos, amassos, suspiros e enfim, uma transa tempestuosa e libidinosa sem nenhuma culpa ou mesmo, um resquício de relutância ou remorso.

E, antes do sol nascer, ele, se cuidando para não ser visto, saía. Lá fora, o dia surgindo, tudo calmo, em volta, tudo deserto, tudo certo, de cabeça baixa para não ser reconhecido, partia, sentindo no ar, apenas o perfume da manhã, enquanto no céu as estrelas iam desaparecendo. À noite, no mesmo horário, voltava.

Um dia ao anoitecer, o marido chegou de surpresa. Ela ficou tão atarantada com a volta dele, que se esqueceu de avisar o amante.

Já passava da meia noite. Quando já estavam deitados, ouviram-se uns ruídos na porta da frente, parecidos a uns arranhados de gato. Aquilo provocou neles um momento de silencio e de imobilidade. Novos arranhados. Marilda, reconhecendo o sinal combinado com o amante, estremeceu. Assustada, ergueu-se ligeiro da cama lembrando-se de não tê-lo avisado da chegada do marido. Seria muita sorte dela se o marido não desconfiar de nada. Só não sabia o que fazer, pois nunca se encontrara numa situação semelhante. O marido, cansado da viagem só queria dormir. Sonolento e impaciente perguntou que arranhados eram aqueles.

Resignada, mas muito sagaz, imediatamente, maquinou um plano para enganar o marido. Sem demonstrar nenhuma preocupação, e sem qualquer mistério, rapidamente disse que só poderia ser alguma alma penada, pedindo oração. Acendeu uma vela, e cheia de fé e boa vontade saiu do quarto dizendo que iria orar pela pobre alma na sala. Com a vela na mão, chegou bem perto da porta e na esperança de que o amante entendesse, recitou bem alto umas palavras rimadas como se fosse uma reza:

- Agora não dá ...meu marido chegou deu azar.

Repetiu três vezes essas palavras e voltou ao quarto confiante de que ele entendera e fora embora. O marido pelo menos, não ouviu nada do que ela falou, pois já estava dormindo. Mas o amante não entendeu, e em menos de dois minutos, insistiu, com os ruídos. O marido que tinha o sono leve, acordou, e sonolento mandou que ela rezasse com mais fé, pois a alma penada continuava lá, perturbando-o.

Rapidamente, ela voltou à sala. Repetiu os dizeres, bem mais alto e pausado, na tentativa de fazer o amante entender:

- Agora não dá ...meu marido chegou deu azar.

Calou-se. Mas, antes que voltasse ao quarto, recomeçaram os arranhados na porta, desta vez, mais fortes. Apavorada, chegou mais perto e recitou bem alto aquelas palavras, temendo que o marido descobrisse tudo e torcendo para que o amante entenrdesse. E para sua alegria ele, finalmente, entendeu a mensagem, mas para o seu desespero gritou:

-Quando é que ele viaja?

O marido, quase dormindo, ainda teve forças para gritar:

- Mulher! Mande logo esta alma infeliz para os quintos dos infernos, e vem deitar, preciso dormir.

Ela, então, sem titubear gritou bem alto, avisando em tom de maldição, para o amante não ter nenhuma dúvida:

- Vai-te, na segunda-feira de manhã.